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Críticas

Cineplayers

Alice no país das maravilhas.

8,5
Parece óbvio dizer isso, mas Mia Farrow significou uma mudança de perspectiva completa no cinema de Woody Allen. Antes de conhecer sua futura esposa e musa de mais de dez filmes, seu cinema era essencialmente masculino, trazendo um filtro do próprio olhar sobre o mundo que explorava com sua lente. Por mais que Diane Keaton também o tenha inspirado em grandes filmes, as personagens que Allen escreveu para ela nunca detiveram uma perspectiva feminina sobre as obras em que participou. Mesmo em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), em que a personagem de Keaton é colocada em tamanha evidência, ela ainda divide suas resoluções com o personagem de Allen, quase sempre no papel de observada por ele, nunca de observadora. A partir de Mia Farrow, Allen parece ter encontrado seu lado feminino e escreveu diversos filmes filtrados pelo olhar das personagens que criou para a atriz, sendo ela a única mulher a ocupar o posto de alter-ego dele, e por meio de quem ele melhor explorou esse outro lado. 

Se essa parceria começou nos anos 1980 com Sonhos Eróticos de Uma Noite de Verão (A Midsummer Night’s Sex Comedy, 1982) e foi se aprimorando ao longo da década nos filmes em que se nota uma sintonia cada vez mais lapidada entre diretor/atriz, como Broadway Danny Rose (idem, 1984), A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985), Hannah e Suas Irmãs (Hannah and her Sisters, 1986), Setembro (September, 1987) e A Outra (Another Woman, 1988), foi somente no início dos anos 1990, com Simplesmente Alice (Alice, 1990), que os dois chegaram ao ápice através de uma maravilhosa egotrip da própria Mia Farrow, momento em que Allen a enalteceu a ponto de se omitir por completo e venerar apenas sua mulher/musa/personagem. 

Simplesmente Alice hoje é um filme injustamente esquecido na vasta filmografia de Woody Allen, e merece ser redescoberto por se tratar de um dos seus trabalhos mais sensíveis, corajosos, engraçados e bem dirigidos. Uma espécie de Mrs. Dalloway alleana (ou farroweana?), Alice é uma personagem riquíssima, defendida com unhas e dentes por uma Mia Farrow que inegavelmente se enxergou na situação e mergulhou de cabeça em sua composição. Para isso, Allen voltou a recorrer às suas referências fellinianas. Se em Memórias (Stardust Memories, 1980) o diretor se inspirou em (idem, 1963) para lidar com seu passado, sua carreira, seus medos, traumas, relacionamentos, lembranças, sonhos e perspectivas, aqui ele recorre a Julieta dos Espíritos (Giulietta degli Spiriti, 1965), rara incursão de Fellini no universo feminino em que o mestre italiano enaltece sua esposa e musa, Giulietta Masina, e a insere num filme repleto de símbolos e elipses sobre uma mulher de meia idade que desconfia das traições do marido, uma situação que refletia a condição do casal na vida real. Da mesma forma, Simplesmente Alice se apropria de uma abordagem onírica (trocando o fator sobrenatural dos espíritos de Julieta pelos efeitos alucinógenos das ervas consumidas por Alice), ainda que bastante cômica, sobre uma dona de casa balzaquiana que um dia se descobre entediada com a futilidade da vida de socialite e com a frieza de seu casamento. 

A viagem de redescoberta de Alice só é possível graças às ervas misteriosas que ela compra do Dr. Yang, em Chinatown. Cada uma delas causa um efeito diferente, como a evocação do fantasma de um ex-namorado de juventude, o retorno à infância e adolescência para confrontar seus dilemas com a mãe e a irmã mais velha, e até a possibilidade de ficar invisível. Sendo um filme de abordagem felliniana, tudo ocorre da forma mais estranha e onírica possível, criando-se uma teia de signos visuais e sacadas cômicas que exploram a sexualidade reprimida de Alice, os arrependimentos, os medos, a insatisfação como dona de casa, a vontade de seguir uma carreira e se valorizar, o anseio de ser levada a sério pelo marido impessoal, o desejo de largar a futilidade da vida burguesa e se dedicar a causas sociais, a preocupação em criar os filhos com valores morais sólidos, e a jornada interior de reavaliação como mulher e busca pelo próprio destino. Allen não teme diante dessa imensidão do universo de Farrow/Alice e se permite literalmente viajar, rompendo qualquer lógica de tempo e espaço e dando à sua musa a chance de brilhar em cenas inspiradíssimas, como quando Alice dança com o fantasma do ex-namorado à meia-luz, para logo depois perdê-lo outra vez, vendo-o se dissipar como um sonho que acaba, ou no momento em que ela volta no tempo e revisita sua casa de infância (numa linda referência a Morangos Silvestres [Smultronstället, 1957]). Mas nada disso soa pesado, pois a abordagem de Allen é leve, contando com vários alívios cômicos, em especial quando Alice fica invisível ou lesada pelas cannabis do Dr. Yang.  

Farrow e Allen ainda trabalhariam juntos em mais dois filmes antes do escandaloso divórcio, mas é aqui em Simplesmente Alice que os dois parecem entrar numa sintonia perfeita, mesmo que à época a crise no casamento deles estivesse em alta. Talvez seja Alice um presente de Allen, uma forma de compensação e tentativa de entender e apoiar o ponto de virada na vida da esposa, como acontecera com Fellini e Masina, ou quem sabe palco para uma redenção da atriz, que brilha como nunca em um filme que é só dela, independente de qualquer ligação com o diretor. Seja como for, é um lindo tratado sobre tudo aquilo que compõe o universo feminino, tão cheio de mistérios e belezas que se espalham e por fim se escondem no coração de toda mulher. 

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