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Sniper Americano

(American Sniper, 2014)
7,3
Média
529 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Mais um pelo caminho.

9,0

Num dos primeiros episódios de The Office, Michael Scott realiza o chamado dia da diversidade. Nesse dia, os funcionários da empresa colam sobre a testa os nomes de diversas raças/nacionalidades, e os funcionários devem agir de acordo com o papel a que foram designados. É daí que surge a maior piada de todos os tempos, onde o funcionário negro da empresa está com um papel escrito “Negro” na testa. Mas também dá surgimento a uma outra, onde Michael diz que não colocou nenhum papel escrito “árabe” na brincadeira porque as coisas poderiam ficar muito “explosivas”.

Essa anedota de The Office serve pra mostrar como Michael Scott é preconceituoso, mas também pode ser usada pra revelar aspectos de apropriação cultural e identidade pessoal, revelar como esses aspectos são sempre trabalhados de maneira espinhosa por culturas divergentes não-representadas, mesmo que com a melhor das intenções.

O filme de Eastwood modela representações norte americanas num contexto norte americano pois é a respeito da própria identidade que um artista pode, com verdadeira consciência, dissertar. Enquadrar uma história em um terreno específico não significa, nem de longe, dar as mãos a um suposto imperialismo. Não significa fazer pouco caso das guerras, mais especificamente a Guerra do Iraque, tampouco significa ignorar questões políticas pertinentes ao conflito.

O que muita gente prefere não considerar é que, ao contar uma história, o autor cria uma narrativa, constrói sentidos que se relacionam culturalmente com o autor e suas representações. Uma cartilha do que e como fazer é dispensável ao construir um filme envolvente e interessante.

Uma das críticas que li a respeito do filme diz que Eastwood é um cineasta notoriamente preto no branco, que não cede espaços à “meios tons”; um cineasta que caracteriza vilões e mocinhos sem contrastes.

Estamos falando de alguém cujo papel da vida foi o ganancioso e egoísta herói da trilogia dos dólares de Sergio Leone; estamos falando de um diretor que dirigiu O Estranho sem Nome, Os Imperdoáveis, Um Mundo Perfeito, Gran Torino. Esse não me parece o currículo de alguém despreocupado com “meios tons”.

Não me parece, inclusive, o currículo de alguém que se relaciona de forma ingênua e leviana com a violência. Na verdade, o que esses filmes mais têm em comum é que são a respeito da violência, de como suas raízes são capazes de consumir seus portadores de forma despersonalizá-los, transformando-os progressivamente em propagadores da violência que os atormenta, da qual eles não podem fugir.

Sniper Americano segue esse apontamento rigorosamente. Durante os dez primeiros minutos somos apresentados a Chris Kyle, em momentos específicos de sua infância e juventude que ressaltam como, desde os primórdios, sua relação com a violência fora naturalizada e exaltada pela sua criação rigidamente texana, seu pai servindo como oráculo dessa naturalização, ensinando princípios técnicos/práticos (como nunca deixar o “rifle na sujeira”) e, principalmente, filosóficos, através da parábola do lobo, da ovelha e do pastor alemão.

Segundo o pai de Kyle, há três tipos de pessoas no mundo. As ovelhas, que fazem o que lhes é ordenado, os lobos, que matam traiçoeiramente as ovelhas, e os pastores alemães, que matam os lobos.

À primeira vista, Kyler certamente seria um pastor alemão. E para aqueles que criticam o filme por um patriotismo exacerbado, o personagem interpretado por Bradley Cooper permanece nessa identidade durante todo o filme.

O contrassenso dessa interpretação deturbada é que ela ignora a jornada pela qual Kyle e àqueles que o cercam fazem pelas duas horas de filme, onde a noção de matador justificado é fortemente questionada e a carcaça espessa de pastor alemão do protagonista é desfragmentada, cedendo lugar a um personagem debilitado, transtornado, frágil e obsessivo.

Durante o treinamento para ingressar no esquadrão de elite do exército americano, Kyle é inabalável e seguro, um soldado feroz desejando praticar a batalha sob a desculpa de proteger sua nação. Quando os ataques de onze de setembro acontecem, os Estados Unidos entram em batalha contra o Iraque e as habilidades de Kyle são, talvez pela primeira vez em sua vida, verdadeiramente requeridas e efetivamente recompensadas.

O soldado não consegue, porém, manter o equilíbrio na sua vida, sendo arrastado para longe de sua família, de seus amigos, de sua nação, em direção a uma batalha que o fere cada vez mais profundamente. Entre as quatro excursões que faz ao campo de batalha, os tempos em que Kyle passa em casa são mais e mais escassos, mais e mais insólitos.

Há três contrapontos que surgem através dos arcos narrativos construídos pelo filme:

- Desenha-se um confronto dramático entre Kyle e o sniper de elite sírio Mustafa. Ambos são extremamente precisos em combate, dotados de certa onipresença. Mustafa e Kyle estão frente a frente em todos os picos narrativos da guerra. Em um desses, o sírio acerta um tiro no rosto de um americano, irrompendo um anseio descontrolado em Kyle para vingar o colega;

- Triunfante no exército, Kyle não desempenha com tanto sucesso seu papel de marido e pai de família. Seu fracasso na vida pessoal é invariavelmente oposto à sua ascensão no exército. As duas facetas são divergentes ao ponto de colocar em questão qual é, de fato, a persona real do protagonista. Ele pode ser uma lenda como soldado enquanto fracassa colossalmente como ser humano minimamente sociável?;

- E o terceiro contraponto está na percepção de Kyle acerca de si mesmo. Durante diversos momentos, o soldado diz que seu desconforto é fruto da constatação pessoal de que muitos de seus colegas morreram em combate e que, provavelmente, ele poderia ter evitado mais mortes caso fosse mais competente. Porém, quando ele é interpelado por um soldado pretendendo expressar admiração, Kyle demonstra constrangimento e evita encarar o colega nos olhos, denotando que sua percepção a respeito de seus atos na guerra não são tão lisonjeiras quanto ele faz parecer.

Todas essas coisas estão manifestas em Sniper Americano, deixando claro que o interesse de Eastwood na história não é glorificar a violência ou reforçar o mito de herói de seu protagonista. Antes, o diretor reflete acerca da violência e suas reverberações. Ao localizar essa reflexão em terreno americano, o Eastwood expõe que as marcas deixadas pela guerra são profundas e irreparáveis, mesmo para o lado dito vencedor.

Kyle é o personagem-veículo dessa exposição. Ele constrói para si mesmo a imagem de um lutador feroz disposto a lutar para a manutenção do que considera ser bom, mas pouco a pouco sua saúde física e mental se fragilizam, dando abertura para (auto)questionamentos que o soldado não ousa entoar, mas que estão presentes como fantasmas horripilantes de uma consciência traumatizada. A obsessão de Kyle em matar o seu contraponto sírio não é apenas um desejo desenfreado de vingança. É uma atitude essencialmente suicida. Matar a lenda para desmistifica-la, humaniza-la. Apenas então ele é capaz de seguir em frente.

Mas nos filmes de Eastwood, a violência não é personagem facilmente extinguido. Ela é absurdamente poderosa, imortal. Em Sniper Americano, ela balança o berço de Chris Kyle, segura suas mãos durante os primeiros passos de uma vida programada de forma trágica para exercê-la, fadada a por ela ser consumida. Kyle é o eco do grande herói americano, trapaceado para acreditar que poderia, apenas por sua força, romper os obstáculos do mundo. Ele é o strong silent type, as costas de Jesse James, o peito encravado de balas de Bonnie and Clyde,  mais uma ferida auto infligida no coração da mitologia dos Estados Unidos da América.

Comentários (93)

Leonardo de Carvalho | segunda-feira, 18 de Maio de 2015 - 09:40

Filme excelente, Clint acertou em cheio mais uma vez !

Alexandre Marcello de Figueiredo | segunda-feira, 18 de Maio de 2015 - 18:43

O cara foi um atirador letal, respeitado e idolatrado pelos colegas nos campos de batalha, conhecido como "A Lenda" e é morto por um um ex-combatente aposentado depois de dar baixa. Destino curioso e trágico. Gostei do filme.

Letícia | segunda-feira, 06 de Julho de 2020 - 23:06

Único ponto do filme que chama atenção é ter Eastwood na direção, compondo boas cenas de batalha. Cooper destrói o personagem. Repleto de clichês. Tema batido e, pessoalmente, acho muito antiquada essa abordagem. Pra mim não funcionou não.

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