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Críticas

Cineplayers

Solaris, de Andrei Tarkovsky, é uma boa pedida para quem acha 2001, de Kubrick, uma bobagem no espaço.

7,0

Estranho esse cidadão, o Andrei Tarkovsky. Metido com ocultismo, fez apenas seis longas metragens (ao todo, apenas nove projetos em 24 anos de carreira) antes que um câncer de pulmão o matasse aos 64 anos deixando a Rússia sem o seu maior cineasta desde Sergei Eisentein. Dizia que dirigir era esculpir o tempo: para Tarkovski, o espectador vai ao cinema com a intenção de encontrar o tempo perdido, essencial para a construção da personalidade do homem. Quem vê os filmes de Tarkovsky vive uma experiência de ordem temporal, momento íntimo e pessoal com o universo desse artista que foi longe, muito longe na arte cinematográfica.

De sua rica e atribulada carreira, coroada de sucessos e prêmios (18 deles listado no IMDB, sendo três deles em Cannes e um em Veneza), talvez o filme menos elogiado dos seus filmes seja este Solaris (1972), mas com razão. O filme anterior, Andrei Rubolev, havia sido banido da Rússia pelas autoridades comunistas e praticamente desapareceu do mapa (o filme foi feito com dinheiro estatal) pelo conteúdo crítico ao regime soviético. Tarkovsky filmou Solaris sob pressão e sofrendo censura, de forma que, dentre seus filmes, é talvez o menor.

É, no entanto, seu maior sucesso comercial, o que lhe abriu as portas para platéias vastas em todo o mundo e de financiamento internacional (ou seja, liberdade artística), além de ter vencido o Grande Prêmio do Júri em Cannes. Tarkovsky usou seus longos e impecáveis planos-seqüências, de imagens irretocáveis e belíssimas, para conduzir essa enigma por vezes brilhante, conhecido como a resposta russa a 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick (Tarkovsky disse que não havia visto o filme antes da realização de Solaris).

A história é magnífica: um psiquiatra é enviado ao espaço para tentar entender o comportamento dos astronautas (um deles havia cometido suicídio) quando se aproximam de um planeta recém-descoberto, Solaris. O estranho mar do corpo celeste teria um certo tipo de inteligência capaz de recriar a memória dos humanos, de forma que o médico tem a chance de rever sua mulher morta anos antes. Solaris, o filme, é baseado no best-seller homônimo de Stanislaw Lem, autor de ficção científica russo. É baixa literatura, mal escrita e sem força – ler o livro é uma grande decepção, apesar do grande achado da estória.

Existem mil maneiras de se analisar o filme, tamanha a sua riqueza, e a obra de Tarkovsky foi esmiuçada por intelectuais da academia, que mobilizaram seus livros, pensadores e todo o aparato intelectual disponível para tentar decifrar as enigmáticas imagens. O resultado é que Tarkovsky hoje, em vez de mais acessível, tornou-se ainda mais impenetrável do que já era. Não se intimide, pois, o espectador, ante a esfinge cinematográfica do cineasta russo. Ver seus filmes pode ser sim uma atitude prazeirosa, desde que se aceite o jogo proposto, o que não é fácil.

O início do filme é um interminável travelling pela casa de campo à beira do lago onde morava o psiquiatra, visivelmente atormentado pela morte da esposa e engolfado na solidão. As imagens tentam mostrar essa situação angustiante com belas imagens submarinas explodindo em detalhes no enorme cinemascope colorido do diretor. Essa abertura dá todo o tom do filme, lento, angustiante, muito belo, indecifrável.

Na ida para a estação espacial, Tarkovsky filma o carro andando pelas ruas e túneis de Moscou. A cena dura vários minutos e é um carro andando em direção ao aeroporto. Tarkovsky mistura imagens preto-e-branco e coloridas de uma forma um tanto gratuita, que chega a incomodar um pouco, inserindo longos vídeos, de gente que sofreu a experiência de Solaris, contando como é ver uma memória reaparecer na sua frente.

O filme sem dúvida dá um salto quando, uma vez sob o efeito do mar de Solaris, a mulher do psiquiatra aparece, primeiro de soslaio, depois de viva voz, e o psiquiatra a mata – ele vai matá-la outra duas vezes – e ela volta. Mas ela não voltará para sempre: depois de fazer uma encefalografia, nenhuma memória volta. Ou talvez, pelo fato de ter sido a terceira volta da mulher: após cada morte, o mar vai perdendo sua força, os mortos-memória voltam enfraquecidos, até que desaparecem, para desespero dos tripulantes.

Uma das mais belas cenas é quando o psiquiatra mata a esposa depois de uma briga congelando-a com oxigênio líquido, só para vê-la ressuscitar. É quando ficamos sabendo da razão da morte dela, o suicídio. Uma vez de volta, a esposa o acusa de ter sido distante e mesquinho, de ter esfriado a relação dos dois e de competir com ela em tudo. Não se sabe se seria ela falando ou o psiquiatra remoendo seus remorsos.

É quando Tarkovsky nos dá a belíssima cena do jantar romântico, com todos os móveis e recordações do psiquiatra (incluindo um cachorro que ele teve na infância) voando sem gravidade pela sala, inclusive ela, que ele carrega nos braços e coloca no lustre. Vestidos de terno e gravata para o jantar, comendo boa comida e bebendo bons vinhos (no espaço sideral!), os astronautas discutem filosofia e os limites da ciência, a fugacidade da vida e principalmente a tristeza de quando suas memórias-vivas, já sem a força do mar de Solaris, se despedem e vão embora. O psiquiatra se despedirá de sua mulher em grande estilo.

Steven Soderbergh refilmou Solaris com George Clooney 30 anos depois. Se Tarkovsky fez um filme típico dos anos 70, com alusões política e muita psicanálise, Soderbergh fez um filme típico dos nossos tempos, ou seja, com muita diluição e facilidades. Nada de discussões filosóficas; a metragem original, de duas horas e quarenta, foi reduzida para confortáveis uma e meia; tudo que é enigmático e soturno no filme original transforma-se em claro e objetivo no segundo.

Curiosamente funciona. Primeiro que os efeitos visuais, de bom gosto, fizeram o mar de Solaris tornar-se uma bela rede elétrica movida a jazz (da trilha sonora). Segundo, Soderbergh tem estofo intelectual para refilmar um Tarkovsky menor. Seus bons atores e sua direção segura fazem diferença. Se seu diluído Solaris não é um grande filme, também não é mau filme e não envergonha ninguém. Afinal, as mesquinharias e franquezas humanas não mudam, e o mar de Solaris pode revivê-las de maneira cruel e ambígüa, em qualquer tempo, em qualquer lugar.

Comentários (6)

Lucas do Carmo | quarta-feira, 16 de Maio de 2012 - 22:22

E ainda falam mal do Demetrius... Critica foda.

Lucas Nunes | quinta-feira, 17 de Julho de 2014 - 12:31

"Solaris, de Andrei Tarkovsky, é uma boa pedida para quem acha 2001, de Kubrick, uma bobagem no espaço."

Parei de ler aqui.

Tiago Nunes | domingo, 28 de Fevereiro de 2016 - 17:03

Não sei se eu assistir uma versão com cortes diferentes da do autor do texto, porquê o conteúdo dos últimos parágrafos está bem diferente do que vi.

César Barzine | sexta-feira, 29 de Setembro de 2017 - 22:15

E ainda falam mal do Demetrius... Critica foda. [2]

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