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Críticas

Cineplayers

Quando chega o outono.

9,5
O outono é a estação do ano metaforicamente associada ao decrescer, ao fim e posterior recomeço. As folhas das árvores caem, a exuberância da natureza parece minguar e o anúncio da chegada iminente do inverno impele a famosa parada para o “balanço”. É o momento apropriado para o desapego, o que nos obriga a encarar aqueles fantasmas no armário que voltam a incomodar com a chegada do frio. Muitos dos cineastas mais sensíveis fizeram essa associação das estações do ano ao humor e interação entre seus personagens, como que uma influência indireta, porém muito poderosa e algo espiritual sobre o destino deles, tal qual Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom, 2003), de Ki-duk Kim. Ingmar Bergman, mestre sueco, também lidou com essa sinergia em filmes como Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, 1962) e Sonata de Outono (Höstsonaten, 1978), e o resultado foi impressionante. 

Bergman sempre foi fascinado pelo mistério latente nas relações femininas, e por isso muitos de seus filmes abordam, com esse intrigante tom enigmático, a interação entre duas ou mais mulheres, como vemos em Gritos e Sussurros (Viskningar och rop, 1972) e Persona - Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966). Contudo, em certa ocasião, o diretor afirmou que de todas essas relações que observava curioso e resignado, a mais estranha e impenetrável era a de mãe e filha. Sonata de Outono veio como um meio de explorar esse laço de segredos e mistérios, e a opção de ambientar a história durante o Outono não foi aleatória. 

Diferente da abordagem arcana de Gritos e Sussurros, onde os sentimentos entre as três irmãs nunca ficam claros para o espectador, em Sonata de Outono o cineasta opta por destrinchar aos poucos cada aresta, cada pensamento, cada julgamento oculto por trás dos sorrisos cordiais e das conversas corriqueiras entre Charlotte (Ingrid Bergman) e Eva (Liv Ullmann). Flashbacks, narrações em off, close-ups incessantes trabalham em prol da nossa imersão total naquele abismo de rancores e culpas que existe entre as duas. A já comentada associação desse embate familiar com as folhas caindo do lado de fora da casa, deixa claro que a intenção de Bergman é desnudar a relação de mãe e filha até sobrar somente o cru, ou somente a árvore nua e sem folhas. 

A história se passa durante o período de férias de Charlotte, uma renomada musicista que vai visitar sua filha Eva no interior. As duas não se veem há sete anos e apesar da empolgação quase infantil da filha em aguardar o reencontro com a mãe, nota-se desde o princípio uma fissura no verniz aparentemente saudável da relação das duas. O filme parte da narração do marido de Eva, o único homem do elenco e por onde Bergman procura nos inserir na história. Embora seja um personagem pequeno, contribui para oferecer uma primeira visão imparcial e distante da relação das duas, para em seguida ser praticamente descartado conforme mãe e filha vão interagindo após o reencontro. Viktor ouve os comentários de Eva sobre sua sogra, um amontoado de lembranças confusas, por vezes felizes e por vezes amargas, o que denota um estranho rancor latente por trás de toda a euforia hospitaleira de sua esposa. Charlotte, por sua vez, assume uma posição quase política – educada, polida, grata, sorridente, maternal, mas por alguma razão forçada demais, quase ensaiada. 

Após os cumprimentos, jantares, conversas triviais, surge uma personagem até então oculta que desencadeará a discórdia: Helena, a outra filha que Charlotte pensava estar trancafiada numa casa de repouso devido a uma doença degenerativa, mas que na verdade mora sob os cuidados e dedicação de Eva. Helena é o estopim para que Bergman confronte a figura materna de Charlotte, uma mulher que preteriu a família em função da carreira, e que guarda dentro de si um misto de culpa e repulsa pelas filhas. Nesse ponto as máscaras (ou seriam as folhas?) começam a cair e Eva começa a externar suas frustrações e traumas do passado devido à indiferença, ausência e rígidas cobranças da mãe, enquanto Charlotte não consegue mais esconder que na verdade nunca quis estar ali. Num tour de force excepcional, Ingrid Bergman e Liv Ullmann protagonizam uma lavação de roupa suja que dura toda uma noite, e o cineasta extrai dali seus maiores questionamentos sobre as esferas do convívio humano. “Mãe e filha. Que mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição”, conclui Eva ao fim do embate com Charlotte. Sempre questionador, Bergman coloca em xeque a base das relações familiares, em que nem sempre prevalece o amor instintivo e incondicional. Charlotte nunca se encaixou no papel que se espera de uma mãe, enquanto Eva e Helena projetam nela essa carência e a cobram por isso, como toda a mulher sempre é duramente cobrada na sociedade quando não se encaixa em algum padrão pré-estabelecido para ela. 

Como todo o filho em busca da atenção de um pai ou mãe ausente, Eva busca um interesse em comum para se aproximar de Charlotte, tentando se espelhar na profissão da mãe por acreditar que assim se tornará enfim um motivo para aprovação e orgulho. Bergman aproveita esse gancho para incluir toda uma influência musical sobre a obra, pontuando as emoções das personagens através da música clássica, em especial com os prelúdios de Chopin, usados na abertura e encerramento do filme. As duas se enfrentam indiretamente ao tocarem esses prelúdios após o jantar, momento em que Bergman sobrepõe os rostos das atrizes, um plano comum em seu cinema e que aqui expõe a relação ao mesmo tempo tão íntima e tão distante entre as duas.  

Outros temas como a morte, o perdão e a religião são pincelados, mas a essência está nessa ousada investida do diretor nas entranhas do universo feminino. As cores outonais, ressaltadas pela fotografia sempre crucial de Sven Nykvist, tingem o tom de redenção da obra, enquanto a trilha sonora erudita realça essa atmosfera quase bucólica e tristonha sobre as verdades por trás das relações aparentemente mais inabaláveis do ser humano. O final em aberto deixa clara a conclusão pretendida por Bergman: Charlotte e Eva ainda precisarão enfrentar um longo, frio e solitário inverno antes de a primavera chegar com suas costumeiras promessas otimistas de esperança e renascimento, e as flores voltarem a brotar. 

Comentários (4)

Augusto Barbosa | sexta-feira, 06 de Maio de 2016 - 20:51

Baita texto, Heitor!

O que Liv Ullmann faz aqui 'tá ali no grupinho seleto de interpretações tipo a de Gena Rowlands em Mulher Sob Influência: passar um filme inteiro a um milímetro de distância do overacting e não escorregar em momento algum.

DEMETRIO ISLAUSKAS DEMOSTENES IVANOFF | sexta-feira, 06 de Maio de 2016 - 21:38

Esse site anda precisando ser mais cuidadoso. Na chamada trata o belo filme como obra de 2015. Doeu-me o peito, pensei que se tratasse de uma angina. Afinal não fora para menos. Refilmar tal obra seria um disparate.

Heitor Romero | sábado, 07 de Maio de 2016 - 19:10

Obrigado pessoal :)

Guto, a atuação de Liv aqui é uma das minhas preferidas s2

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