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Críticas

Cineplayers

Parece traduzir os delírios visuais de um adolescente com os hormônios em ebulição.

5,0

Não deixa de ser sintomático o fato de que um cineasta como Zack Snyder seja considerado um visionário – como é qualificado nos trailers de seus filmes. Em um momento da indústria cinematográfica no qual impera a escassez de criatividade, quando o reaproveitamento de velhas fórmulas buscando a familiaridade com o público dá as cartas, qualquer diretor que ofereça algo levemente diferenciado tem tudo para se destacar. E Snyder, mesmo que longe de ser um grande realizador, realmente é capaz de proporcionar algo fora dos padrões normais, mesmo que seja unicamente em termos de técnica e estilo. Em todos os seus filmes, seja o ótimo Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead, 2004), o divertidíssimo 300 (idem, 2006), o problemático Watchmen – O Filme (Watchmen, 2009) ou a pouco vista animação A Lenda dos Guardiões (Legend of the Guardians: The Owls of Ga’Hoole, 2010), o apuro visual é sempre o carro-chefe, o que acaba causando sérios problemas de roteiro e narrativa.

Pois Sucker Punch – Mundo Surreal é talvez a epítome das virtudes e fraquezas de Zack Snyder como cineasta. O filme, divulgado pelo próprio diretor como a sua obra mais pessoal, apenas comprova toda a sua capacidade de construir cenas visualmente irrepreensíveis ao mesmo tempo em que corrobora as suas dificuldades em contar uma história com personagens interessantes. Snyder possui, indiscutivelmente, um olho muito bom para composições de quadros: há alguns planos belíssimos em Sucker Punch – Mundo Surreal desde os primeiros minutos de projeção, na estilizada sequência que dá início à produção. O cineasta utiliza a fotografia ao explorar as cores das formas mais distintas, enquanto trabalha sem pudor com diversos recursos utilizados atualmente por cineastas que se julgam “modernos”, como a câmera lenta – o que acaba funcionando quase como um tiro no pé, como será comentado mais além.

Sucker Punch – Mundo Surreal, de certa forma, pode ser considerado como a resposta aos que ficaram incomodados com o excesso de abdomens sarados em 300: aqui, as protagonistas são jovens garotas – com nomes provocantes como Rocket, Sweet Pea e Bebydoll – exibindo seus atributos físicos em trajes mínimos, ostentando, de quebra, metralhadoras e espadas enquanto eliminam robôs, nazistas e gigantescos samurais. Em outras palavras, o filme parece ser uma brincadeira milionária de um adolescente rico com os hormônios em ebulição, disposto a levar às telas tudo aquilo o que povoa a sua mente na puberdade. E Sucker Punch é exatamente isso: uma aventura juvenil que mais parece um imenso jogo de videogame, inclusive com suas fases e chefões bem definidos, no qual não há qualquer senso narrativo ou de construção de personagens – apesar de que isso, justiça seja feita, nem parece ter passado pela cabeça de Snyder como um de seus objetivos.

E o filme poderia ser mais do que apenas as espetaculares sequências de ação. O ponto de partida da história é promissor em termos de desenvolvimento, uma vez que trabalha sobre projeções mentais como forma de fugir da realidade. Assim, o roteiro escrito pelo próprio Snyder e por Steve Shibuya poderia trabalhar as fantasias como representações com algum significado, simbolizando o estado psicológico da protagonista, com seus medos e temores. No entanto, não há o menor sinal disso. Snyder utiliza a premissa da história somente como uma desculpa para poder criar cenas de ação mirabolantes, sem qualquer apego ao mundo real. Não existe, em Sucker Punch – Mundo Surreal, um desenvolvimento para uma relação emocional entre as personagens, um arco dramático para alguma delas ou mesmo uma base para justificar as fantasias criadas pela protagonista – sem qualquer explicação, ela começa a imaginar que está em uma espécie de prostíbulo onde ainda “sonha” com mundos tão díspares quanto uma trincheira de guerra e um trem em movimento prestes a explodir uma cidade. De onde vêm essas ilusões e o que elas representam segue um verdadeiro mistério para o espectador.

Assim, por consequência, Sucker Punch – Mundo Surreal é praticamente insuportável quando diminui o ritmo e se volta para a ínfima história. Os acontecimentos se sucedem um ao outro sem o menor sentido ou razão para as ações dos personagens, enquanto alguns diálogos chegam a causar vergonha de tão ruins, como as lições de moral dadas pelo personagem de Scott Glenn antes das meninas entrarem em alguma missão – além disso, alguém sabe explicar de onde ele vem? Como se não bastasse, Snyder não consegue manter coerência nem mesmo nos mundos malucos que cria, uma vez que algumas heroínas desaparecem sem justificativa durante as missões e vilões não param de surgir quando isto parece adequado ao roteiro. Da mesma forma, o texto apela para uma narração absolutamente incoerente, que tenta dar algum sentido onde não existe nenhum. Mas a falta de habilidade de Snyder nas questões narrativas se torna gritante ao encerrar o filme mudando completamente o foco da história, dando importância de protagonista a uma personagem que foi, durante toda projeção, nada mais do que uma coadjuvante.

Mesmo que falhe de forma monumental em sua execução dramática e narrativa, é preciso ressaltar que, estética e plasticamente, Sucker Punch – Mundo Surreal é uma realização inspiradíssima. Além da já citada utilização de variadas paletas de cores, Zack Snyder também se apropria de um fantástico trabalho de direção de arte para construir mundos fantasiosos nada menos que espetaculares – com destaque para aquele que lembra uma aventura a estilo da trilogia O Senhor dos Anéis. Como se não bastasse, o cineasta demonstra novamente inegável talento ao construir planos belíssimos e cenas de ação muito bem filmadas, com ângulos e movimentos de câmera interessantes. Ainda assim, Snyder tem uma clara tendência ao excesso e, na vigésima-sétima vez que a protagonista pula desviando de uma lâmina em câmera lenta e no quadragésimo-oitavo momento em que as garotas caem no chão com poses estilosas, a plateia percebe que o diretor ainda tem muito a evoluir, parecendo mais apaixonado por si mesmo do que realmente comprometido em realizar um bom filme – e a cena na qual a câmera parece “entrar” em um espelho enquanto as atrizes conversam no camarim é mais um exemplo disso, mostrando um recurso estilístico curioso, mas sem muito propósito narrativo.

E, falando nas garotas, elas estão presentes em Sucker Punch – Mundo Surreal não para criarem personagens – ou até mesmo atuarem –, mas somente para parecerem, com o perdão da expressão, gostosas. A limitação da faixa etária impede que Snyder chegue a apresentar cenas de nudez, mas ele não deixa de explorar ao máximo o corpo de suas atrizes, inclusive com planos que parecem formulados com este único objetivo. Assim, gente comprovadamente talentosa como Abbie Cornish e Jena Malone nada consegue fazer com além de se tornar as representações de um imaginário juvenil e, embora todas sejam lindas (a protagonista Emily Browning parece feita de porcelana), isso não é o suficiente para a construção de personagens interessantes, pelas quais a plateia venha a se identificar. Até mesmo uma atriz de certo nome como Carla Gugino parece perdida, criando um sotaque nada menos que lamentável. E por que John Hamm, por cima com a série Mad Men, aceitou participar de um filme no qual tem duas ou três falas?

Em 1997, o francês Luc Besson realizou O Quinto Elemento (The Fifth Element, 1997), uma divertidíssima aventura de ficção-científica que, segundo o próprio cineasta, havia sido criada por ele na adolescência. Era um filme assumidamente juvenil e, ao não se levar a sério, funcionava muito bem como entretenimento. Sucker Punch – Mundo Surreal, pelo contrário, leva-se a sério demais e, consequentemente, não chega a lugar algum. É visualmente belo e com momentos de inspiração isolada – a boa utilização de músicas pop é outro acerto –, mas não comove, não empolga, não gera tensão e não diverte. Zack Snyder demonstra mais uma vez que precisa crescer muito como cineasta antes de realmente se tornar o visionário que a indústria parece acreditar que seja.

À plateia, resta apenas ter que agüentar quase duas horas de imagens sem fundamento, enquanto olha para o relógio esperando ansiosamente aquilo que a protagonista do filme parece não querer: a volta à realidade.

Comentários (2)

Raphael da Silveira Leite Miguel | segunda-feira, 24 de Outubro de 2011 - 20:28

Excelente crítica! Apesar disso, acho muito bom os outros trabalhos do diretor, como Madrugada dos Mortos, 300 e Watchmen – O Filme.

Robson Oliveira | sábado, 02 de Fevereiro de 2019 - 18:42

Filme ruim demais para ser salvo pelas cenas legais de ação, no final nada faz sentido.

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