Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Lentes honestas por detrás da marginalização.

8,0
Três iPhones 5s, 100 mil dólares no orçamento e muita boa vontade. Esses foram os primeiros ingredientes para que o diretor Sean Baker lançasse Tangerine e ganhasse os holofotes dos festivais independentes com a história das desventuras de duas amigas transexuais em meio a uma ensolarada cidade. Sem qualquer toque de grandeza e um grande quê de simplicidade, Baker carrega seu filme através de uma narrativa regada por situações por vezes hilariantes, por vezes estridentes, por vezes melancólicas, mas sempre autênticas em seu retrato sobre a marginalização de uma classe.

A travesti e prostituta Sin-Dee Rella (Kitana Kiki Rodriguez) acaba de sair da prisão, tendo cumprido uma pena de 28 dias. Em plena época natalina, sua amiga Alexandra (Mia Taylor), também travesti, revela que o namorado e cafetão de Sin-Dee está lhe traindo com uma “mulher de verdade”, o que leva Sin-Dee a percorrer as ruas de Los Angeles atrás do namorado e sua amante para tirar satisfações.

É com este plot banal e até mesmo vagabundo que Baker adentra um cotidiano até então desconhecido e ignorado por uma sociedade que marginaliza a classe transexual e, pior ainda, das que usam o sexo para ganhar o pão de cada dia. Há quem poderá taxar Tangerine de estereotipado e caricato, mas o diretor vai deixando claro, conforme sua narrativa acontece e a noite cai na cidade, que o que acompanhamos ali é algo bem longe da pincelada que Hollywood traria a um tema como estes. Assemelhando-se a uma espécie de documentário em tempo real, somos gradativamente inseridos e fisgados pelas duas protagonistas e sua luta diária pelo respeito, igualdade e rasas oportunidades de se firmarem na vida, seja no lado financeiro ou das próprias enquanto pessoas.

Mesmo explorando tais dificuldades, Baker injeta um afiadíssimo humor negro em seu filme. É difícil conter as risadas após um dos “programas” de Sin-Dee, ao mesmo tempo em que não há como não sentir aquele toque de comoção e angústia por aquela situação. Essa mescla de sentimentos transforma Tangerine numa grande ironia, especialmente quando entra em cena o taxista armênio Razmik (o produtor do filme Karren Karagulian), um pai de família que nutre desejos e sentimentos por Alexandra. O clímax na lanchonete, com todos os personagens reunidos, denota a falsa sensação de absurdo de muitas situações do filme, desafiando o espectador a despir a cortina desse suposto “surrealismo” e encarar, entre risadas e tristezas, o que é fazer parte desta classe ainda esquecida e desvalorizada pela sociedade.

E tudo isso é elaborado com uma sutil delicadeza e extrema sinceridade por Baker; não apenas no notável carinho por suas duas protagonistas, mas também pela forma com que o diretor de fotografia Radium Cheng captura a cidade e suas esquinas através de fortes raios alaranjados, remetendo ao título original do filme. Com sua repercussão nos festivais e a crescente boa recepção que tem conquistado em meio ao público, Tangerine vai se firmando como um forte candidato a clássico cult. Mais que isso, Tangerine é um feito e uma aula sobre como fazer algo realmente muito com tão pouco em mãos. Recomendadíssimo.

Comentários (4)

Rafael Alves | quinta-feira, 11 de Fevereiro de 2016 - 15:47

a música do Led é foda.

Alan Nina | sexta-feira, 12 de Fevereiro de 2016 - 18:56

Muito bom texto, meu amigo Rafa!
Só um detalhe: travesti é diferente de transexual, talvez fosse melhor usar o termo "transgênero" (este sim é o termo mais geral que abarca ambos)

Faça login para comentar.