Saltar para o conteúdo

Críticas

Usuários

E a vida continua.

0,0

Tarde Demais (Beautiful Boy, 2011) não parece ser diferente dos outros filmes que tratam de um tema que anda infelizmente em voga: a violência promovida por jovens que atentam contra vidas alheias e, não raro, contra as próprias. Quando ficamos sabendo que um indivíduo entrou armado numa sala de aula e descarregou uma ou duas munições inteiras contra um grupo de inocentes, não lidamos com um fato isolado. Em termos de produção cinematográfica, é impossível não pensar em Tiros em Columbine (Bowling For Columbine, 2002) ou na provável adaptação que o desgraçado episódio de Realengo ganhará. Todavia, aqui, Shawn Ku mostra o outro lado da história, pois busca refletir sobre as máculas deixadas, sobre o que acontece depois, uma vez que não leva à tela as imagens de um assassinato em massa e seus precedentes (mesmo que através dos diálogos das personagens conheçamos alguns deles), e sim o seu terrível legado. Para isso, ele volta seu olhar à vida dos pais de um garoto que cometeu homicídio, seguido de suicídio, chamado Sam (Kyle Gallner).

O filme inicia com Sam, ainda criança, diante de uma câmera, numa praia. Ele toma o equipamento para si e começa filmar os pais, enquanto uma voz em off (a do próprio Sam, já crescido e na faculdade) narra um texto que completa a cena. É comum o primeiro plano/cena de um filme dizer muito a seu respeito. Aquilo que Sam filmou acaba se tornando um refúgio, localizado no passado, no tempo em que provavelmente a felicidade o cercava - felicidade que, como o filme deixa transparecer, desapareceu totalmente da vida de sua família. Depois vemos o rapaz em uma sala, onde ele está lendo seu texto sem receber a atenção dos presentes. Enquanto isso, seu pai está no escritório, e sua mãe, na rua, tentando falar com ele e resolvendo um assunto profissional. É um longa sobre distancias, como veremos doravante.

Quando marido e mulher estão em casa, a câmera nos transforma em testemunhas de uma relação absolutamente insípida. Bill (Michael Sheen) está almoçando, e Kate (Maria Bello), trabalhando em frente ao computador. Eles trocam poucas palavras, sempre de costas. Estão distantes espacial e, pelo tom de suas falas e pelo vazio desenhado nos enquadramentos, afetivamente. Essa distância será percebida em muitos outros momentos do filme, não apenas naqueles em que os cônjuges estão em lugares distintos, pois quando aparecem juntos, continuam absortos, encarcerados em si próprios; quando sozinhos, permanecem fincados melancolicamente entre as paredes e ainda pouco observados de perto por nós. Muitas vezes, a câmera – que, como vemos, frequentemente insiste em manter-se isolada – nos coloca atrás de alguma porta, para que de lá respeitemos a tristeza do casal. Eles caminham, mas nem sempre os acompanhamos.

Tarde Demais dramatiza uma espécie de sofrimento que não depende exclusivamente do crime cometido pelo jovem, já que o gesto tresloucado da personagem de Gallner, entre outras motivações, encontrou impulso justamente nesse doloroso processo de esfacelamento do seio familiar; ou seja, a crise, evidentemente, já existia antes do sinistro acontecimento e foi ponto de partida para ele. Bill e Kate, então, passam a tentar compreender o quão culpados são por tudo aquilo, e assim vão se reaproximando. Durante as discussões, vamos conhecendo um pouco a vida de Sam. Partimos, portanto, das consequências e chegamos ao princípio, e nesse processo identificamos no filme de Ku os lugares comuns pelos quais tanto esperamos desde a leitura de sua sinopse.

Durante os minutos finais, a voz de Sam ressurge narrando o mesmo texto do início, e concluindo-o. Ele diz algo sobre dois jovens que chegam a uma praia, que, por sua vez, se alegra com a presença deles e sente, quando o casal vai embora, que nunca mais o verá. Depois disso, tem início um rigoroso inverno. Lidamos com um texto metafórico no qual Sam é a praia; seus pais, os jovens; e o inverno sem fim, o tempestuoso momento por que passam os dois desde o instante em que abandonaram aquele areal tão ensolarado que deles tanto gostava. Então, pela última vez, a câmera vai-se distanciando de Bill e Kate, deixando-os mais uma vez a sós. Agora, no entanto, eles ficam sozinhos para poderem usufruir daquele que é o contato afetivo mais sincero de o todo o filme – à exceção, claro, daquele registrado em vídeo pelo filho.

Apelando para uma analogia geométrica, podemos conceber o filme de Ku como um losango. O passado, mesmo que resumido a um vídeo caseiro e àquilo que conhecemos através das personagens, foi certamente o grande momento de felicidade para a família; logo, compreende o primeiro ponto de encontro entre as diagonais. O ápice da distância entre essas diagonais representa a condição polarizada à qual se submete a relação dos pais, que está intimamente ligada ao auge do momento conturbado de Sam. As diagonais se juntam novamente ao final do filme, pois Bill e Kate vão contornando a situação até que, sem Sam (pois, como seu texto sugere, ele é a praia esquecida que jamais voltará a ver os dois juntos), encontram-se próximos novamente. Tarde demais, então, é isto: mais um filme convencional, bem vestido, de geometria elementar, que fez uso dos recursos mais comedidos e objetivou traçar um caminho diferente – que, todavia, não deixou de facilitar o sucesso de suas ambições frugais. É apenas uma obra frágil, de essência aparentemente bonita, que no solo do cinema médio fincou suas raízes.

Comentários (0)

Faça login para comentar.