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Críticas

Cineplayers

Com todos os defeitos e virtudes de um desenho da Disney, Tarzan foi o primeiro a demonstrar o esgotamento da fórmula dos desenhos à mão.

6,0

Com o passar dos anos, a Disney construiu tal padrão no campo dos desenhos animados, que o reconhecimento do público e da crítica era invariavelmente certo. Prova disso está no fato de O Rei Leão ser a 15ª maior bilheteria de todos os tempos (dados obtidos no IMDB) e  A Bela e a Fera deter o recorde de ser o único filme de animação a ser indicado ao prêmio máximo da Academia (feito que, após a criação da categoria específica para filmes de animação, dificilmente será igualado num futuro próximo). No geral, os enredos traziam histórias já bastante conhecidas, acessíveis a todas as idades, recheadas por personagens bonitos, um romance na trama central, coadjuvantes engraçadinhos, um vilão perverso, e muitas canções ao longo dos seus 80 ou 90 minutos de projeção.

No entanto, de tão assimilado nos corações e mentes dos espectadores do mundo inteiro, a Disney nunca pareceu muito disposta a aceitar qualquer tentativa de dar um tratamento diferente ao seu estilo. Agora, olhando para trás, passados mais de cinco anos de seu lançamento, Tarzan talvez tenha sido o primeiro sinal do erro tático cometido pelo estúdio e que vem provocando efeitos devastadores no seu departamento de animação. Ainda que, do ponto de vista comercial, o filme tenha sido um dos maiores sucessos da temporada de 1999, já era possível perceber que a fórmula estava se esgotando.

Além disso, outro responsável pela queda de rendimento da Disney foi a entrada no mercado de sua própria subsidiária, a Pixar. Com ela, um novo conceito de animação entrou no ar, não apenas na forma como também no conteúdo. O desenho à mão cedeu espaço para as técnicas de computação gráfica. Os roteiros - e aqui, na minha opinião, reside a principal mudança - passaram a ser mais inteligentes e espirituosos. Não é de hoje que a tarefa de levar as crianças para se assistir ao "desenho da vez" deixou de ser um fardo para os pais. É provável que, hoje, sejam os adultos que mais insistam em carregar seus rebentos ao cinema, tal a inventividade das histórias e das situações. É emblemático que, no mesmo ano de Tarzan, Toy Story 2 recebeu o Globo de Ouro de Melhor Filme Comédia ou Musical, ficando em terceiro lugar nas bilheterias norte-americanas, atrás apenas do imbatível A Ameaça Fantasma e da surpresa daquela temporada, O Sexto Sentido. Os sinais da necessidade de mudança de rota estavam bem à frente. A Disney não quis ver. Deu no que deu.

Com relação ao desenho propriamente dito, Tarzan traz a história mais do que conhecida, baseada no livro de Edgar Rice Burroughs, já filmada diversas vezes em longas ou curtas-metragens. Logo no início do filme, numa espécie de video-clip, os personagens centrais são apresentados e a origem do protagonista é estabelecida. Um navio inglês afunda nos mares da África, e um casal com seu bebê de colo consegue se salvar. Passam a morar numa ilha aparentemente deserta, sem a presença de qualquer ser humano. Paralelamente, o filme mostra a vida selvagem lá existente, se centrando numa tribo de gorilas, lideradas por Kerchak (dublado por Lance Henriksen) e sua parceira Kala (Glenn Close). Com a morte do casal, morto por um leopardo - que é apenas sugerida - a gorila fêmea se torna a mãe adotiva do menino, apesar da contrariedade de Kerchak. O bebê recebe o nome de Tarzan e é educado em meio aos costumes dos macacos e elefantes da região. Com o passar dos anos, ele cresce, torna-se um adulto selvagem, e se esgueira com habilidade entre as árvores e cipós das florestas. Mas nunca consegue ser reconhecido pelo seu "pai adotivo" como um legítimo representante da raça. A visita de um grupo de exploradores e pesquisadores de gorilas, vem desestruturar a paz do local e alterar o modo como Tarzan observa o mundo e a si mesmo.

Talvez este seja um dos problemas principais de Tarzan. Seu enredo não apenas é conhecido por todos, como também o roteiro não faz muita questão de trazer qualquer originalidade. O filme fica previsível e até convencional. Quando Kershak rejeita seu filho, sabemos que Tarzan fará o possível para se tornar um integrante do bando. Quando o personagem de Jane entra no filme, é evidente que Tarzan vai perceber suas semelhanças físicas com os humanos e, consequentemente, começar a se questionar sobre sua vida entre os gorilas. E que, além disso, vai descobrir o sentimento amoroso a partir de Jane. É certo que em quase todos os outros desenhos de Disney havia esta previsibilidade, tudo em nome da defesa dos bons valores morais (o reconhecimento paterno, a família, o amor etc.). Mas aqui não existe um tratamento diferenciado nestes temas. É tudo muito adocicado e sem inspiração. Em O Rei Leão, a morte do pai de Simba é muito bem preparada pelo roteiro, que deságua na espetacular cena do estouro da manada. Em O Corcunda de Notre Dame (talvez o último bom desenho da Disney, sabe-se lá porque subestimado por boa parte da crítica) é particularmente bela a cena em que o padre se penitencia pela luxúria que sente por Esmeralda. Em A Pequena Sereia, há uma seqüência maravilhosa, na qual os protagonistas tentam se beijar, com o auxílio de uma orquestra de bichinhos, regida por um caranguejo, mas que é frustada no último instante pelo surgimento de dois crocodilos vilões. São exemplos de situações aparentemente banais, armadas pelo roteiro com muita originalidade e inspiração, tudo com o objetivo de esquivar-se do lugar comum. Esta virtude não está presente em Tarzan.

Além disso, é um dos desenhos da Disney menos engraçados. Os personagens coadjuvantes, sempre motivo de riso, e as piadas em si, não tem muita graça. O pai de Jane (dublado pelo falecido Nigel Hawthorne) procura ser engraçado, mas beira o ridículo. A macaquinha dublada por Rosie O'Donnel tenta ser o alívio cômico da história, mas também não obtém muito êxito (a seqüência em que ela e seus companheiros retiram som de objetos inanimados, como máquina de escrever, pratos quebrados e folhas rasgadas, além de ser de um oportunismo evidente, na medida que inspirada no grupo Stomp, é apenas bonitinha). E o jeito britânico recatado de Jane é previsível, apesar da boa dublagem de Minnie Driver.

Outro problema sério de Tarzan é a falta de um bom vilão. Pode-se dizer que os desenhos da Disney são tão bons quanto melhores forem seus vilões. Foi assim em A Bela e a Fera e Aladdin (este, em particular, contava ainda com o auxílio de um Robin Williams nos seus bons tempos). Isso sem falar nos clássicos Branca de Neve e os  7 Anões, Cinderela e A Bela Adormecida. Veja-se o vilão de Pocahontas, por exemplo, e teremos um exemplo do porque o filme não fez tanto sucesso com a crítica. Em Tarzan, o caçador de gorilas Clayton, não é tão maléfico quanto um vilão deve ser. Quando ele surge na história, parece que está mais interessado em se exibir para Jane, do que maltratar os animais da floresta. Mesmo no momento que o roteiro exibe suas reais intenções, transformando-o em bad guy, ele não é assim tão ameaçador.

Apesar destas falhas, é um filme foi um dos mais inovadores do ponto de vista da técnica de animação. A floresta em que gorilas vivem é rica em detalhes. As "surfadas" de Tarzan nos cipós e galhos das árvores é movimentada, e não fica nada a deve a qualquer filme de ação. A Disney anunciou com este desenho a invenção de uma nova técnica, denominada Deep Canvas, pela qual era possível ao desenhista dar uma tridimensionalidade nas cenas, inatingível em outros tempos. E realmente podemos sentir - especialmente no cinema - a  efetiva emoção de navegar com Tarzan por entre as matas daquela selva. A luta entre Tarzan e o leopardo e a fuga de Jane dos animais selvagens, são incrivelmente bem realizadas, com o máximo de riqueza de detalhes.

Outra escolha acertada do filme é não quebrar a narrativa com inúmeras canções. Se antes esse recurso parecia a melhor escolha - tanto que o compositor Alan Menken, cansou-se de levar as estatuetas do Oscar para casa - em Tarzan já podíamos sentir uma pequena tentativa de dar mais atenção ao roteiro. A DreamWorks foi o primeiro estúdio a perceber esta mudança de gosto do público, realizando o suntuoso - mas inóquo - O Príncipe do Egito praticamente sem qualquer canção. Em Tarzan, as músicas servem apenas de pano de fundo, geralmente para marcar a passagem do tempo na trama. E todas elas são cantadas por Phil Collins, que as compôs especialmente para o filme. A melhorzinha delas, You'll be in My Heart, foi celebrada com o Oscar. Nas animações de hoje, pouco ou nada da trama é intercalada por canções.

Ao final, resta um filme movimentado, divertido, feito para toda família e que mantém a tradição do estúdio, tanto as boas, quanto as más. O público correspondeu em peso e a maioria dos críticos americanos o celebrou como o retorno dos desenhos de Disney à forma, depois dos fracassos de Pocahontas e Hércules. De minha parte, creio que a sensação de incômodo que tive ao assistir o filme, provavelmente foi compartilhada por diversos outros espectadores. A Disney devia ter tido a percepção de sentir o aviso de um possível cansaço do padrão estabelecido. Creio que o tempo provou que eu estava certo. Afinal de contas, quem se lembra, hoje, de Atlantis - O Reino Perdido, A Nova Onda do Imperador e Lilo e Stich? Talvez nem mesmo os executivos da Disney.

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