Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Uma belíssima pequena obra-prima de Pasolini, um filme de pura arte.

8,5

Quem cresceu nas décadas de 80 e 90, pegou o ápice da videoarte e da cultura televisiva, além dos primeiros passos do DVD e, em grande parte dos casos, incorporou essas mídias como os principais veículos do cinema, hoje preferindo assistir a um filme em casa que se aventurar em sessões superlotadas. Não que isto seja de todo ruim, ainda mais com os avanços gráficos proporcionados pelo DVD e som ambiente, mas não há como negar a experiência infinitamente mais rica de uma sala de cinema; não a das micro salas nos "multiperplex" dos shoppings, mas aquelas vastas salas antigas, às vezes com 400, 500 lugares, e que, até hoje, são as melhores salas do Brasil, tanto no aspecto técnico quanto espacial. É privilégio de poucos terem oportunidade de assistir a filmes nestes cinemas, e acabam por escolher o DVD como única alternativa. Entretanto, alguns filmes, cuja linguagem visual é um apelo à parte, deveriam ser proibidos de passar, não fossem nessas salas, visto como a experiência diminui drasticamente numa tela de tv; são filmes como Nostalgia de Tarkovsky, 2001: Uma Odisséia no Espaço de Kubrick, A Bela e a Fera de Jean Cocteau, a versão em 70mm de Tempo de Diversão, do Jacques Tati... e o filme em questão, Teorema. No pôster italiano, dizia que haviam apenas 923 palavras faladas no filme, mas que ele dizia tudo. Verdade seja dita, ele não precisava de nenhuma delas, tamanha a força de suas imagens.

Época do pós-guerra; rendição dos camisas pretas de Mussollini na Itália, o avanço do bloco soviético, dando força aos partidos comunistas, o clima de incerteza política e econômica, época do surgimento do neo-realismo italiano. Veio então o Plano Marshall, a reestruturação da economia italiana e os avanços da burguesia, que, mais uma vez, tomavam as rédeas da estrutura social vigente, época em que o neo-realismo já havia perdido a força e o cinema comercial predominava, e não só na Itália. É então que chegamos à década de 60: os movimentos sociais de esquerda explodindo em todo o mundo, entre eles os partidos comunistas, o auge da cultura hippie, agora fazendo-se ser notada, época em que a Nouvelle Vague francesa inspirava os novos cinemas de todo o mundo; e Teorema nasce no coração desta época, 1968, ano da rebelião estudantil em maio na França.

A história se passa numa típica família da alta burguesia milanesa, pai, mãe, os dois jovens filhos e a empregada. Um dia, eles recebem um hóspede, que o filme não deixa claro se trata-se de um parente, de um conhecido ou de um estranho. O jovem, da idade do filho mais velho, apenas diz que irá ficar lá por uns tempos, sem explicar o porquê, ou da onde veio, e a comunicação entre ele e a família, assim como entre os próprios membros da família, beira ao zero. Ele então vai, um a um, seduzindo as pessoas da casa e, após todos terem caído em seus encantos, ele recebe um telegrama e avisa que precisa partir. Desde breve encontro que então emerge a essência do filme.

O hóspede, interpretado por um jovem Terence Stamp, é uma figura tão misteriosa quanto icônica, e serve apenas como um catalisador natural para os acontecimentos, o foco central do filme é mesmo a família. Temos a figura opressora do pai, industrial dono de uma fábrica, que leva uma vida sexual infrutífera com a esposa, a filha mais nova (Anna Wiazemsky, a garotinha de A Grande Testemunha), ávida por álbuns de fotografia que idolatrava o pai, o filho mais velho, jogador de basquete e estudioso de artes plásticas, e a empregada. Apesar de estarem em família, vivem por conta própria, e o papel do hóspede é exatamente ruir com esta ultima máscara social deles; exposta a fragilidade da família e dos indivíduos, tudo começa a desmoronar. A empregada volta para a sua vila natal, o filho é o próximo a sair de casa, indo buscar um ateliê para morar, a filha se volta para o conforto dos álbuns de fotografia, e a mãe busca substitutos para o seu encontro com o jovem misterioso.

De certa forma, todos passam a buscar algo para substituir o vazio deixado pela ausência do hóspede. Como na história do filho que nunca sentiu a falta de dinheiro, e começa a sentir a partir do momento em que o pai começa a dar mesada e, subitamente, a corta, as pessoas da família, que experimentaram pela primeira vez uma libertação da rotina maçante burguesa, onde era-se dado o voto de silêncio para os problemas afim de preservar a harmonia, após a saída do jovem, não conseguem voltar à vida antiga. É uma experiência religiosa por natureza, a vinda do visitante é como a vinda de um anjo, ou de um demônio, e a família toma-o como um parâmetro. A mãe ainda tenta repetir a experiência da maneira mais frívola, achando que o simples ato sexual com outros jovens seria a resposta, mas apenas se encontra mais perdida. O contato com o sagrado não é algo racional, premeditado; o passo no escuro aconteceu com aquele jovem e somente aquele, e ninguém na família soube aproveita-lo, com exceção da empregada. Ela, ao voltar à sua vila, encontra uma paz latente que agora, após seu contato com o jovem, consegue perceber, e se transforma numa espécie de santa iluminada, que passa seus dias sentada num banco à refletir sobre a humanidade. Assim como cada um tem uma experiência diferente, cada um reage a ela diferentemente. Ao mesmo tempo em que o filho aceita a mudança e põe-se à prova, esperando que o encontro tenha, talvez, lhe propiciado uma iluminação artística, a filha nega a partida de seu amante e se prende às fotografias, reflexos de uma imagem perfeita dos tempos passados.

Eu deixei o pai para o final por julgá-lo justamente o mais importante. Se podemos traçar paralelos entre a família e a sociedade, sendo a empregada a religião, o filho a arte, a filha a família, e a mãe a sexualidade, o pai certamente representaria a burguesia em si; talvez por isso seja dele o tombo mais alto. A relação dos dois foi mais que meramente sexual, ou mesmo uma relação idealizada entre pai e filho, como deixa transparecer certas horas. Como no citado livro de Tolstoi, o jovem era o que ele considerava uma salvação, uma necessidade. Um dia, o pai acorda ao amanhecer, e percebe que algo está mudado, o jeito como as folhas se movem, como o vento sopra, até encontrar o jovem dormindo na mesma cama do filho. O encontro dos dois no pântano funciona como um confessionário, o pai, sendo a barreira final da estrutura burguesa da família, finalmente se entrega e, como numa missão cumprida, o jovem logo recebe o telegrama que anuncia sua despedida. Sendo o mais perdido de todos, o pai busca a redenção, na esperança de que o jovem volte, e dá a fábrica aos empregados, e sai vagando, nu, sem rumo, até chegar num deserto vulcânico.

“Deus fez o povo rodear pelo caminho do deserto”, cita o filme esta passagem do Êxodo. A figura do deserto é muito importante em Teorema, visto que um plano deste mesmo deserto aparece sempre que um dos membros se deixa seduzir, além de ser o plano que abre e fecha o filme. É um lugar para reflexão, longe de tudo e todos, onde os paradigmas da sociedade não te atingem, e o pai vai andar ao acaso nu pelo deserto, como um grito final de desespero. Não só o plano do deserto, mas todo o conjunto de imagens do filme é muito importante. Tanto o fogo quanto a água são bastante utilizados nos momentos onde se atinge um contato mais profundo com a alma humana, seja no momento do despertar do pai, a cena do pântano, ou no momento do ‘enterro’ da empregada. Os simbolismos da imagem deste filme são muito ricos e complexos, e deixar cada plano estendido, cada enquadramento falar por si próprio, aliados à bela trilha de Ennio Morricone, jazz instrumental e Mozart, transformam uma simples visita ao filme em uma experiência religiosa, e só isso já valeria o ingresso. Mas o filme vai além, pianinho, e quando nos damos conta, estamos presos neste angustiante teorema pasolínico.

Comentários (2)

André Policarpo | sexta-feira, 06 de Janeiro de 2012 - 11:19

Excelente crítica! Completou tudo que me faltava dessa linda obra de Pasolini.

Eduardo Pepe | quinta-feira, 03 de Julho de 2014 - 01:54

Bela análise! Conseguiu extrair a força da obra.

Faça login para comentar.