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Críticas

Cineplayers

Homenagem de Fulci à liberdade de criação é também o filme de terror definitivo.

9,5

Poucos estilos permitem tamanha liberdade imaginativa quanto o terror, mas grande parte dos realizadores que arriscam um ou outro movimento dentro do gênero parece sentir a necessidade de manter um pé no real, como se assim ajudassem quem vê a se familiarizar – sem negar que alguns filmes dependem do real pra causar sensações tão extremas, mas fazem parte de outra espécie. Terror nas Trevas é o tratado definitivo de Fulci, um dos maiores especialistas do cinema fantástico italiano da década de 1970/80, sobre o universo onírico do filme de horror, um cinema tão desprendido da coerência quanto impecável na busca de sensações intraduzíveis como forma de explorar as mais diversas possibilidades que a influência do plano sobrenatural pode exercer na vaga noção de realidade - representada unicamente pelo fato de os personagens serem humanos.

Pré-conceitos para o suposto funcionamento de um filme normalmente são resultado de insegurança por parte de quem comenta qualquer coisa, mas há de se cair na falácia. Não há possibilidades de se assistir Terror nas Trevas sem a consciência de que Fulci busca, a partir do famigerado plot envolvendo a abertura de um portal para o inferno, um estado de pura liberdade cinematográfica, desprendido de qualquer razão, desprovido de qualquer padrão. O pouco de trama que existe é dissolvido juntamente com os corpos transformados em suco através daquela solução cáustica de cal com qualquer coisa. O mínimo de diálogos ou elucidações é engolido pela neblina que paira sobre as ruas da cidade. O filme tem vida. Própria. Sua.

Ou melhor, nem toda sua. Por que Terror nas Trevas é o Frankenstein de Fulci, mas ainda pertence a Fulci. Mais do que um exercício de entrega completa à superioridade da imagem sobre qualquer outro elemento que compõe o cinema, o filme é uma celebração do poder inimaginável que um criador possui sobre sua obra. Por isso, numa combinação catártica dos principais elementos do cinema fantástico, Lucio Fulci declara oficialmente estar chutando o último pau que segurava a barraca. Em Terror nas Trevas vale tudo. Corpos e pessoas presentes em três lugares ao mesmo tempo; coisas que mudam de lugar conforme a necessidade de cena; portas que sem explicação levam personagens a outros cenários; armas que disparam mesmo sem balas; casas que mudam de estado conforme o que as habitam; vultos e sons inexplicáveis; pessoas que somem e aparecem sem motivos; etc.

Dependendo da necessidade para se alcançar o tom exato de atmosfera e tensão, na maior parte do tempo devastadoras – em certos aspectos The Beyond se assemelha ao melhor que o jogo Silent Hill pode oferecer, em termos de atmosfera -, Fulci vai mexendo os palitos, colando situações desconectadas superficialmente que, juntas, permitem ao filme uma exploração tão apoteótica das sensações mais intensas e possíveis de serem transmitidas pelo cinema que nada mais resta a não ser a entrega completa ao universo explorado, que de cena em cena exala uma paixão interminável pela fantasia, pela ficção – e é curioso o paradoxo instaurado a partir disso tudo, ao mesmo tempo em que se vê Terror nas Trevas como um belo exercício de adoração também é um dos filmes mais assustadores que se há conhecimento.

E em se tratando de Fulci, do homem que carrega o título de “Pai do Gore”, é quase irresponsável não mencionar as intermináveis e inconfundíveis cenas de carnificina, ainda mais por serem deste filme algumas das mortes mais geniais – e sangrentas - já filmadas. Fulci trata o corpo humano como um simples artefato de carne e sangue, estoura cabeças, rasga membros, fura olhos, arranca vísceras, corrói crânios e larga seus bichos de estimação – aranhas, cachorros e zumbis, por quê não? – para fazerem um verdadeiro banquete da matéria física dos personagens, uma combinação explosiva que dá ao filme aquele tom praticamente exclusivo de pesadelo sem solução – o que é definitivamente celebrado na conclusão, quando a dupla finalmente chega ao “outro lado”, às trevas, uma imensa paisagem desoladora que sentencia o final tanto da corrida de ambos em busca de uma saída - curiosamente acaba também sendo a entrega, não havia mais o que fazer - quanto da viagem do espectador através do poder do cinema.

Para quem acredita que filmes precisam ter chão, teto e quatro paredes, Terror nas Trevas é um prato cheio, daqueles a serem degustados com um bloquinho do lado pra canetear os principais furos de roteiro e falhas de continuidade, mas quem conseguir cair de cabeça no espírito desta aventura fulciana certamente guardará o filme como uma experiência inesquecível de contemplação à imagem e, principalmente, uma belíssima declaração de amor à liberdade de criação.

Comentários (1)

Angelão | sábado, 21 de Julho de 2012 - 10:06

"Para quem acredita que filmes precisam ter chão, teto e quatro paredes, Terror nas Trevas é um prato cheio..."
É verdade, no entanto, tal análise é muito simplista. O filme desde o início se apresenta como um pesadelo surrealista(assim como Um Cão Andaluz de Bunuel), cobrar lógica é ridículo. Grande filme e grande crítica.

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