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Críticas

Cineplayers

Ao vacilar entre materializar o monstro ou não, Babadook gera medo como poucos filmes conseguiram nos últimos anos.

9,0

Desde Invocação do Mal, no ano passado, não se falava tanto a respeito de um filme de terror. Isso acontece por dois principais motivos. Os planos desconcertantes e entrecortados ditam o fluxo do filme, pagando tributo pesado ao expressionismo alemão por servir de influência primária na composição estética de Babadook, filme de estreia da atriz e agora roteirista/diretora Jennifer Kurt. Mas também, e aqui as opiniões costumam diferir, existe uma desmaterialização da criatura que, acredito eu, contribui e muito para que o filme seja bem avaliado pela crítica e pela audiência, tanto num plano mais básico de apreciação, através dos sustos e do medo que o filme causa, quanto também num plano mais amplo, de realmente observar as características gerais do filme. Explico.

Nos últimos anos tenho observado com frequência cada vez maior que grande parte dos filmes de suspense e terror recentes têm dificuldades para manter a tensão, especialmente na medida em que o filme avança e a criatura é, com mais forma, revelada. Provavelmente isso ocorra porque a partir do momento em que a criatura toma forma, ela já transgrediu para o plano real do filme, sendo necessário que aconteça imediatamente o confronto, a batalha final, momento em que o herói pode se rebelar contra o medo e enfrentar de frente a criatura, ou entregar-se a ela.

O Babadook esquiva em revelar-se, no entanto, e isso contribui bastante para o filme consiga suportar o avançar da história sem abrir mão da tensão. O monstro é presença invisível, transformando-se periodicamente em pessoas, sendo um e todos ao mesmo tempo. A essência mitológica por trás do bicho-papão é bem sumarizada no terceiro filme da série Harry Potter, onde cada aluno de Hogwarts abre um guarda-roupas, e a magia do bicho-papão toma forma de seus mais sinceros e profundos medos.

Há três cenas que tornam explícita essa ideia: a) quando Amelia se masturba e ouve os ruídos característicos do monstro se aproximando, mas na verdade é o seu filho; b) quando Amelia se olha no espelho que há dentro do guarda-roupas e vê o seu próprio reflexo; e c) quando o monstro se manifesta como Oskar.

O Babadook tem forma e rosto, é verdade, e é assustador. Mas a maneira como o filme escolhe articular a presença do monstro é seu grande diferencial, pois, ao manifestá-lo em vários personagens em diferentes momentos da história, forma-se uma teia instável onde pessoas estão contra pessoas e o terror, dessa forma, se torna ilimitado. A sombra que o Babadook projeta ao abrir seus braços e levantar sua capa é grande suficiente para encobrir vidas inteiras, desnorteando os julgamentos e embaraçando os próprios reflexos. Descortina-se, assim, o grande conflito do filme, que é corpóreo e visceral à Cronenberg, onde mãe e filho, cartas postas à mesa, embatem-se, à procura de expurgar seus traumas ou então apagar a si mesmos.

Os corpos de mãe e filho personificam perfeitamente a atmosfera do filme. No início, vacilantes, cheios de tiques, porém dotados de certa estabilidade; no meio, sombrios e instáveis, porém ainda humanos; ao final, entregues aos gritos, aos vômitos, ao sangue, viscerais ao ponto da deformidade. Cada etapa representando sua missão de incomodar, assustar e finalmente explodir com a ação, desencadeando o clímax e as resoluções.

Babadook é um filme angustiante e assustador, como há muito não se via, atinge esses sentimentos através de artifícios cinematográficos autênticos que engrandecem a apreciação posterior, ao invés de diminuí-la. O Iluminado mais uma vez procriou, engajando-se em um ato carnal perturbador com A Invocação do Mal para gerar um filme que desconcerta e amedronta enquanto faz brilhar os olhos, e o cinema de gênero terror respira aliviado, mais uma vez, para ser continuamente mal tratado durante meses ou quem sabe anos, mas apanhará de pé, com a certeza que as joias, ainda que raras, são potentes o bastante para o manter vivo para sempre.

Comentários (9)

Luiz F. Vila Nova | domingo, 14 de Dezembro de 2014 - 22:05

O estilo expressionista adotado por J. Kent na direção é bastante interessante, primando pela tensão no uso do contraste entre luz/sombra e enquadramentos milimetricamente calculados. As atuações são acima da média também. Entretanto perde força no terço final, quando a sugestão é deixado de lado. A solução "a la Stephen King" também não me agradou. Ainda assim um eficiente terror psicológico com momentos arrepiantes. Recomendo.

Felipe Lima | segunda-feira, 26 de Outubro de 2015 - 17:24

Ótima crítica pra essa pequena joia do terror recente. Só um adendo: tá escrito Jennifer Kurt, no início do texto, quando o correto seria Jennifer Kent.

MARCO ANTONIO ZANLORENSI | terça-feira, 15 de Março de 2016 - 23:27

Sinceramente me decepcionei com esse filme que poderia ser bem melhor não tivesse apelado para cenas caricatas de filmes como "o exorcista" sem falar na cena "esqueceram de mim" o moleque manda muito bem no filme e a cara de pau de mãe e filho no final são impressionantes.

Kennedy | quarta-feira, 29 de Junho de 2016 - 23:08

É um filme deficiente? Sim. Mas não pq se perde lá pelo final materializando o monstro. Inclusive a explanação do texto da crítica é bem contundente. Um dos problemas é que demora muito - pelo menos aconteceu isso comigo - pra se gerar uma conexão maior com os personagens.

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