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Críticas

Cineplayers

Lamentavelmente, o fundo do poço para um dos cineastas que ajudaram a moldar o cenário do cinema independente dos anos 90.

3,0

Quem assiste a um filme de Kevin Smith, hoje, jamais diria que o gordinho nerd foi um dos principais responsáveis por consolidar o cinema independente norte-americano nos anos noventa. Ao lado de nomes como Steven Soderbergh e Quentin Tarantino, Smith chamou a atenção do público – e dos estúdios – com filmes originais e ousados, sem medo de versar sobre temas que dificilmente seriam encontrados no cinema comercial. Obras como O Balconista (Clerks, 1994) e Procura-se Amy (Chasing Amy, 1997) ajudaram a abrir espaço para diversos cineastas que viviam à margem do “sistema”, levando às telas um sopro de criatividade através de um estilo irreverente, personagens interessantes e, principalmente, diálogos afiados sobre temas com os quais o público jovem conseguia se identificar.

Atualmente, no entanto, dizer que Kevin Smith é uma sombra do que já foi seria um elogio. Sua última obra que pode ser considerada acima da média foi Dogma (Dogma, 1999). Desde então, o diretor/roteirista não conseguiu repetir a inspiração dos seus primeiros trabalhos e, agora, com este Tiras em Apuros, atinge o nível mais baixo de sua carreira. Trabalhando pela primeira vez apenas no papel de diretor (o roteiro ficou a cargo de Robb e Mark Cullen), o outrora inovador Smith comprova que realmente passa por um grave período de escassez de ideias, entregando um produto puramente comercial, sem qualquer resquício da antiga criatividade e, o que é ainda pior, sem o menor sinal de ter noção do que é um cinema de qualidade.

Para começar, trata-se da velha, batida, pisoteada, surrada e escamoteada história da dupla de policiais tentando desvendar um caso, com toques de humor. Esta trama já foi incontáveis vezes levada às telas e, por estar esgotada, torna-se cada vez mais difícil transformá-la em algo interessante. Smith, Robb e Mark Cullen não conseguem. Tiras em Apuros usa e abusa de todos os clichês possíveis deste subgênero, desde a suspensão após uma missão fracassada, passando pela mocinha em perigo e chegando até á dupla de policiais com a qual os protagonistas têm uma espécie de competição. Claro que, dependendo da forma com a qual é abordado, um lugar-comum pode não incomodar – infelizmente, aqui, eles parecem apenas reutilização de ideias manjadas.

Como se não bastasse recorrer aos clichês, o próprio enredo de Tiras em Apuros não possui a menor lógica. É uma situação absurda após a outra, dando a impressão de que o objetivo dos roteiristas não era construir uma trama com sentido, mas apenas criar uma desculpa para inserir uma dezena de frases supostamente espirituosas. Um acontecimento simplesmente leva a outro sem muita explicação, enquanto outros não possuem a menor razão de existir: a perseguição de carros que termina em um cemitério, por exemplo, é de uma burrice tamanha, afinal, os bandidos mandaram os mocinhos recuperarem o carro e tentam eliminar os dois enquanto eles fazem o serviço.  
 
 udo isso até poderia ser relevado se houvesse química entre os protagonistas, fazendo com que o filme fosse ao menos divertido. Bruce Willis e Tracy Morgan, no entanto, parecem estranhos um ao outro, sem trocarem qualquer diálogo memorável. Para piorar, Morgan (o Tracy Jordan da série 30 Rock) é um dos atores mais insuportáveis da atualidade, apelando para gritos e exagero em exatamente todos os momentos – repetindo, aliás, o que faz no programa que – sabe-se lá como – o levou ao sucesso. Já Bruce Willis é capaz de interpretar este tipo sem o menor esforço e é isso o que parece fazer em Tiras em Apuros, no qual parece não se dedicar nem um pouco ao personagem. Difícil é entender o que um astro do seu calibre faz em uma produção tão caótica; deve ser alguma dívida de gratidão assumida com Kevin Smith no set de Duro de Matar 4.0 (Live Free or Die Hard, 2007) ou algo assim.

Em defesa dos atores, é justo ressaltar que o material oferecido a eles também não colabora para a construção dos personagens. O roteiro jamais os trata como pessoas reais, acreditando que o desenvolvimento deles se daria unicamente com as superficiais histórias de fundo criadas para cada um deles: a questão da traição da mulher, no caso de Paul, e a trama envolvendo casamento da filha, no que se refere a Jimmy. Ao invés de proporcionarem background para a identificação da plateia com os personagens, ambos os enredos são tratados de forma rasa, acrescentando absolutamente nada à construção de Paul e Jimmy, que seguem até o final da obra como meras caricaturas sem qualquer traço interessante – e o fato de Paul ser quase uma criança que jamais seria contratada pela polícia apenas reforça este problema.

Ao mesmo tempo, é de se lamentar ver Kevin Smith, reconhecido pela qualidade de seus diálogos, trabalhar com um texto tão pobre. Os irmãos Cullen não conseguem criar uma única piada realmente interessante, reciclando ideias e apresentando situações sem a menor graça. Para eles, a definição de algo engraçado é ver o personagem de Sean William Scott repetindo à exaustão o que os outros falam, uma brincadeirinha tão infantil que leva o público a se questionar sobre a idade mental dos roteiristas. E, se isso já chega a ser quase ofensivo, a cena na qual Tracy Morgan fica longos minutos falando sobre as suas fezes é simplesmente vergonhosa - um momento de sua carreira do qual Bruce Willis certamente vai se arrepender por anos de ter participado.

Smith sempre foi melhor roteirista do que diretor e, exatamente por trabalhar aqui em cima do texto de outros, suas fraquezas como cineasta se tornam ainda mais claras. Se seus planos continuam sem grande inspiração ou elegância, surpreende a falta de timing cômico apresentado em diversas cenas, nas quais se alonga além do necessário (como no momento já citado sobre o diálogo das fezes de Paul). Além disso, Smith não é a pessoa mais recomendada para filmar cenas de ação e, infelizmente, a obra traz várias delas, todas tediosas e sem inspiração. De quebra, a trilha sonora – que, provavelmente, deveria funcionar como uma homenagem aos filmes do gênero nos anos oitenta – parece apenas deslocada.

Nada se salva, então? Com muita boa vontade e um pouco de esforço, é possível se entreter levemente com algumas referências à história do cinema. E só. Ponto final. Tiras em Apuros é um verdadeiro caos que parece ter sido desenvolvido por crianças sem a menor noção do que é um filme. É realmente lamentável ver Kevin Smith, há pouco tempo um dos grandes nomes do cinema independente norte-americano, como chefe de tamanho desastre.

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