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Tomboy

(Tomboy, 2011)
7,6
Média
172 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Descobertas e dúvidas da pré-adolescência.

7,0

Abordar o universo infantil e adolescente no cinema nem sempre é fácil. Alguns resolveram contar suas histórias por uma linha autobiográfica e realista, como Truffaut, em Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959) e Na Idade da Inocência (L´Argent de Poche, 1976). Outros partiram para o mundo da fantasia, como Wolfgang Petersen, em A História sem Fim (The Neverending Story, 1984), e Spike Jonze, em Onde Moram os Monstros (Where the Wild Things Are, 2009). Outros ainda, preferiram passar seus recados ao estilo cartoon, como Louis Malle, em Zazie no Metrô (Zazie Dans Le Metro, 1960) e Chris Columbus em Esqueceram de Mim  (Home Alone, 1990). De um modo geral, o difícil é conciliar as necessidades narrativas com as realidades do mundo da criança (o que geralmente explica roteiros que conferem uma inteligência e maturidade incompatível com a idade cronológica do personagem mirim). No entanto, talvez mais difícil que isso, seja a tarefa de enfrentar o tema da descoberta da identidade sexual. Alguns diretores aceitaram o desafio, como Lukas Moodison, em Amigas de Colégio (Fucking Amal, 1998), Kimberly Pierce, em Meninos Não Choram (Boys Don´t Cry, 1999), Pawell Pawlikoswki, em Meu Amor de Verão (My Summer of Love, 2005), e Cristina Sciamma, em Lirios D`Água (Naissance des Pieuvres, 2007). Todos estes filmes abordavam o início das experiências sexuais por garotas na faixa dos 15 anos para cima. Agora, a mesma Sciamma volta a assunto com Tomboy (idem, 2011), vencedor do Teddy Bear no Festival de Berlim de 2011, e que aborda o assunto da sexualidade na pré-adolescência.

Ela se chama Laura (Zoé Héan). Tem 10 anos. Logo na primeira cena, vemos apenas sua nuca. Um cabelo loiro e bem curto. Ela estica as mãos parecendo querer voar em meio às folhagens que a cercam. Rapidamente percebemos que ela está em pé, dentro de um carro em movimento, e seu pai (Mathieu Demy) segura suas pernas com segurança. Em seguida, ele a ensina os primeiros movimentos ao volante, virar à esquerda, à direita, dar seta etc. Em casa, descobrimos que Laura tem uma irmã, Jeanne (Malonn Lévana), de 6 seis anos, e que sua mãe (Sophie Cattani), está grávida de um menino que deve nascer nos próximos dias. O ambiente é harmonioso, as filhas são amadas, e os pais se respeitam. Uma família de bem com a vida.

Mas algo estranho se passa com Laura. Ela quer fazer novas amizades com as crianças do bairro para onde acaba de se mudar. Ela vai dar um volta nas redondezas para se aproximar de alguns garotos que viu pela janela do seu apartamento. Em vez deles, Laura encontra Lisa (Jeanne Disson), uma menina da sua idade, talvez um ano mais velha, que aparentemente foi colocada de lado nas brincadeiras dos meninos. Lisa se aproxima e pergunta a Laura seu nome. Ela segura a resposta por um segundo, olha para o lado, e retruca: Michael. O corte de cabelo, as roupas e os trejeitos masculinos tornam aquela afirmação perfeitamente crível. Lisa apresenta o novo morador do bairro para os outros garotos e, em pouco tempo, Michael (ou Laura) é aceito como mais um elemento integrante da turma. Os conflitos de Tomboy nascerão da busca de identidade sexual de Laura, e da sua tentativa de prolongar uma mentira sabidamente insustentável no longo prazo.

Tomboy aborda o sempre delicado tema da passagem da infância para a adolescência, em que meninos e meninas passam a ter uma noção mais precisa do corpo e a fazer a descoberta da própria sexualidade. Sem dúvida, umas das fases mais difíceis da vida, não tão rósea como se propaga na mídia, em que os jovens são metralhados por turbilhões de informações, emoções e sensações, para as quais eles ainda não têm a maturidade suficiente de compreensão. É o que acontece com Laura, a protagonista da história. Com 10 anos, ela está começando a viver este momento. Obviamente que ela tem a consciência de que é uma menina e das implicações que isso traz. Mas por algum motivo qualquer, ela não está confortável com o seu sexo, com seu corpo e com sua aparência. Aparentemente ela se sente mais à vontade com o cabelo bem curto (em vez de cachos) e com camisetas e shorts (em vez vestidos ou saias), que lhe dão um aspecto visual realmente ambivalente. Seu corpinho magrinho e ainda indefinido, ajuda. Laura não tem nem mesmo certeza se gosta do sexo oposto. Mesmo despertando o interesse de Lisa e incentivando um breve flerte, não fica claro se ela tem prazer na companhia da nova “namorada” ou no rápido beijo das duas. As respostas para as dúvidas de Laura sobre sua homossexualidade não estão no filme e caberá ao espectador tirar suas próprias conclusões.

Felizmente o roteiro, também de autoria de Sciamma, não aponta os motivos que levaram Laura a assumir, perante os colegas, uma identidade masculina. Certamente a razão não está no ambiente familiar. Seus pais têm um bom relacionamento, sem brigas, sem xingamentos, de inteiro respeito. Não há a solução fácil de fazer deles os vilões da história, transformando-os em alcoólatras, viciados em drogas, pedófilos ou coisas do tipo. Ambos demonstram muito amor pelas filhas, confiam nas suas respectivas potencialidades (quando o pai ensina Laura a dirigir), são amorosos quando necessários (quando o pai pega Laura em seu colo), e compartilham a todo instante com elas a notícia da chegada do irmãozinho (quando a mãe pede para que elas escutem os movimentos que ele faz dentro da sua barriga). É verdade que os pais se mostram um pouco ausentes do universo das filhas (o pai está com um emprego novo e a mãe é obrigada a passar o dia inteiro repousando). Mas este dado, além de me parecer uma opção da diretora, que quis conscientemente excluir os adultos da narrativa, não justificaria a conduta de Laura. Ela está em dúvida com o seu sexo e pronto. Nem todos os nossos atos têm explicações psicológicas.

Na temática, Tomboy lembra um pouco o bom filme belga Minha Vida em Cor de Rosa (Ma Vie en Rose, 1997), que contava a história de um menino que se vestia com as roupas da mãe, causando uma comoção na família e na cidade. No entanto, enquanto que na obra de Alain Berline (que chegou a ganhar o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro), o ar era de comédia e fantasia, em Tomboy o clima é austero, sem trilha sonora, sem perfumaria. O silêncio é elemento importante da narrativa, que intensifica a dúvida e o isolamento da protagonista. Há também muita câmera na mão e longos planos-sequências. Em certos momentos, Tomboy parece um filme dirigido pelos irmãos Dardennes.

Em um trabalho tão minimalista assim, há que se destacar o elenco, em especial a atuação de Zoé Héran no papel central. Em algumas entrevistas de divulgação do filme, a diretora Sciamma afirmou que se não fosse Zoé, Tomboy nem sequer existiria. E eu acredito. A narrativa é toda calcada na ambivalência do sexo de Laura. Para que a coisa funcionasse, o público teria que acreditar na possibilidade de ela ser vista e aceita pelos colegas como um menino. E a interpretação de Zóe faz tudo isso possível. Tanto que quando Laura assume a identidade de Michael, ninguém desconfia que ela esteja mentindo (o roteiro é esperto em não revelar o nome da personagem até o momento exato que a história pede). A composição de Zóe é tão perfeita que, ao final, quando ela é obrigada e usar um vestido longo, nós simplesmente achamos que algo está errado e recusamos a acreditar que ela possa ser realmente uma menina.

Além de Zóe, não dá pra deixar de falar de Malonn Lévana, a jovem atriz que faz Jeanne, a irmã de Laura. Sua espontaneidade cativa o público logo de cara. Na sequência em que é apresentada, é impressionante o modo como ela olha para o pai (fora do quadro) e estica os braços em busca de um abraço. Há mais verdade e sentimento naquele olhar do que em muita atuação premiada com o Oscar por aí. Além disso, a química entre Malonn e Zóe nos faz acreditar no amor entre aquelas duas irmãs e na relação de confiança que se estabelece mais à frente entre elas. As cenas em que ambas aparecem brincando no quarto ou na banheira são de um ternura real que há tempos eu não via. Se a diretora afirmou que Tomboy não existiria sem a atriz que interpreta Laura, eu acrescentaria dizendo o que o filme perderia muito da sua força sem a jovem que faz sua irmã.

Sem psicologismos, sem explicações baratas, sem firulas (a curta duração mostra isso) e sem edulcorar a realidade, Tomboy é eficiente na sua proposta. Sciamma é honesta em retratar as dificuldades de adolescentes de pele e osso, que existem em mundo real e não fantasiado. A cena final de Tomboy, ao menos, parece indicar que Laura se aceitou como é. Mas como em assuntos como esse não há respostas definitivas, caberá ao espectador preencher as lacunas da narrativa e fazer internamente seu próprio filme.

Olho em Tomboy, desde já um das obras mais interessantes a surgir nessa safra de 2012 que acaba de se iniciar.

Comentários (7)

Bruno Kühl | domingo, 15 de Janeiro de 2012 - 18:04

Depois da ótima nota (por que 7,0 vindo do Régis é sinal de filme bom), fiquei ansiosíssimo pra dar uma conferida, gosto desse tema de gênero sexual...

Rafael Polito | quarta-feira, 18 de Janeiro de 2012 - 14:03

Pra quê contar o filme inteiro (inclusive o final)? Eu só lamento quem ainda não viu o filme...

Yuri Alves | terça-feira, 31 de Janeiro de 2012 - 18:08

Não acredito tanto nesta ideia de homossexualidade ou dúvida quanto ao próprio sexo. Na verdade, foi uma ideia bem retirada da interpretação livre de Régis. A "dúvida" de Laure, na verdade, não é uma dúvida. É só o ato de assumir uma identidade. O foco do filme é justamente a infância, o olhar infantil, e não chega a direcionar-se com tanta força a um âmbito de "dúvidas" ou "orientação sexual". É daí que vem a interpretação livre digna de uma criança. Será que ela era gay? Sera que é transgênera? Não importa, a visão infantil do longa só nos mostra que não há conclusões "adultas" apropriadas, ou até mesmo que estas devam ser evitadas para tocar no assunto. Laure é o que é e não se importa, nem vê problemas nisso.

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