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Críticas

Cineplayers

Cinema, palavra e riso.

8,0
O texto pode conter spoilers sobre a trama. 

Quando o cinema se debruça sobre uma excentricidade, e aqui ficaremos restritos apenas àquelas que dizem respeito a personagens, é comum que sua trajetória culmine numa pequena lição, e ainda mais comum que esta gire em torno de uma suposta beleza da vida. ''A despeito de (inserir adjetivos depreciativos que deem cor a essa falta de normalidade), é preciso cantar, dançar, ser você mesmo'', parecem nos dizer esses tipos de obras, personificações da lenga-lenga feel good, como se transmutadas em entidades que servem de veículo para enunciar algo. Mas filmes não ''falam'' de coisas, disto ou daquilo, não servem de ''abordagem'' para certos temas; eles são composições, mentiras construídas, acúmulos de vetores cênicos. Fala-se isso porque no final de Toni Erdmann (idem, 2016), colocado no limite, no instante em que mais um passo o injetaria de um didatismo afetado sobre como levar a vida, um dos personagens some de cena e sua protagonista permanece no quadro, imutável e entretanto alterada, fiel à sua escolha mas com um leve sobrepeso no olhar.

Mas há ainda um outro caminho simplista e fácil pelo qual Maren Ade não percorre: dramatizar uma relação turbulenta, sobretudo no seio de uma família, é como implorar pelo recurso do flashback, da ida ao passado, ou ao menos das revoltas infantis, como se os diretores quisessem fazer parte de um jogo de exorcismo, que se alargam em dois personagens que não cessam em discutir o passado. Eis que Erdmann, personagem e filme, é a pura objetividade de um fluxo em ascendência. Como um agente que se impõe para provocar, surtir efeito, e não desiste. Pai e situação ao mesmo tempo. Após uma sucedânea de tentativas brochantes em provocar o riso diante da filha e seus sócios e chefes, Erdmann é assumido como personagem, e a performance quase grotesca de múltiplas personalidades e um só rosto se inicia, tão leve quanto virar de frente para uma platéia. 

Inserida num emprego cujas únicas diretrizes parecem ser agradar a todo custo, sob os olhos do pai, a filha se resume a uma enxurrada de frases prontas: ''tudo bem… não, não, está ótimo''; ''eu realmente adorei''; ''sim, eu entendo''. O seu corpo rijo, ansioso e sem jeito se torna, então, contraponto adequado para a performance destrambelhada, sem mesuras e de mau gosto do oponente que, a princípio, ele personifica. E o que é uma performance? Ou melhor, qual seu efeito mais costumeiro e principal, quando não aquele que faz revirar os olhos? Erdmann desestabiliza, abre uma fenda e faz surgir o extra-cotidiano. Tudo começa a ficar inquietante, absurdo demais, e então, mas só então, ele passa a ser desejado. Foi preciso um outro esquisito para colocar um espelho em frente a Ines e mostrá-la o quão bizarra ela também é – e todos podem ser. Mas é também o inesperado de sua performatividade que a permite corroer o engessamento de seu próprio meio de trabalho. 

Que os pontos de ruptura da personagem sejam a cantoria forçada de uma música de auto-superação na casa dos romenos e a festa de aniversário nudista, não parece ser por acaso. Ines, desejosa em ser adulta demais, em acertar demais, retorna a dois momentos típicos do cenário infantil: une a celebração de seu aniversário, provavelmente uma das primeiras situações a que somos submetidos, a um despudor que irrompe sem avisos; pouco antes, acompanhada pelo dedilhar de piano clichê do pai, grita a canção, retorna à falta de inibição momentânea típica da criança. 

Se o filme de Maren se constrói também uma comédia, é preciso logo saber das essências. De que se trata essa comédia? Como ela se dá? Decerto não há um só tipo. Hawks fundamentava-as com ritmos frenéticos, Allen com excentricidades prosaicas. Basta olhar para a cena: há um fluxo, um continuum de colocação de palavras e gestos, como se a lei fosse a da ação e reação. É preciso que aquelas imagens durem em situações extensas, desconfortáveis, para que o jocoso finalmente se atinja. Alguém diz algo e todos voltam os olhares, riem desconfiados, franzem o cenho em descrença. E a câmera zigue-zagueia, decupa os movimentos, mostra-nos o choque quase químico entre o corpo-alvo a palavra descuidada, tímida, absurda.

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