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Críticas

Cineplayers

Trama farsesca.

8,5

Apesar de eventuais flertes com o macabro, os filmes de Hitchcock não se aliam às escolas cinematográficas derivadas da literatura de Edgar Alan Poe e outros autores de horror fantástico. Suas imagens evitam a transcendência do campo, de modo que não permitam contato com o fantástico, com o que não pode ser visto ceticamente – ou, numa inversão de origens, com o que a câmera não possa documentar no mundo -, opção que confere uma tensão particular aos filmes. A imagem em Hitchcock, mesmo em seus trabalhos considerados inverossímeis, é resultado de um olhar pragmático que ilumina ao espectador o que há de visível no espaço cênico: o que deve ser assimilado pelo olhar sob mediação da câmera, antes ou através do personagem, desde que para sua compreensão não seja necessária outra manifestação de fé que não o simples – e ao mesmo tempo complexo e desafiador – ato de olhar.

Surge desse impasse uma questão que perpassa diversos trabalhos do diretor, a exemplo de Trama Macabra (Family Plot, 1976): como solucionar em cena a presença do fantástico, diante desta impossibilidade real de transformá-lo em imagens? Se filmes como este, Um Corpo Que Cai (Vertigo, 1958) e Os Pássaros (The Birds, 1963) seguem ainda hoje tão encantadores, é também por essa questão ser resolvida radicalmente de diferentes (e decisivas) formas: por exemplo, na ruptura da atmosférica ambientação sobrenatural da metade inicial de Vertigo, desmentida pela revelação da encenação que transforma completamente o contexto da narrativa; ou pelo final maldito de Os Pássaros, no qual, frente à impossibilidade de uma explicação lógica para a tragédia, o mistério do estranho comportamento dos animais é sustentado para além do filme com um tortuoso e prematuro fade out, deixando o espectador completamente à deriva.

Trama Macabra, neste aspecto, talvez seja um de seus filmes mais didáticos e representativos – e ganha conotação simbólica por ter se tornado a obra final da carreira de Hitchcock, em decorrência de seu estado de saúde, que o impediria de filmar a partir de 1976. A impossibilidade de registrar ceticamente o fantástico gera intervenções fundamentais no material escrito por Ernest Lehman (parceiro do diretor no antológico Intriga Internacional [North By Northwest, 1959]) para a adaptação do romance The Rainbird Pattern ao cinema – solicitadas a Lehman pelo próprio Hitchcock. A mais decisiva delas é justamente a subversão do elemento fantástico da história original, convertendo-o em uma grande piada que se prolonga durante todo o filme até a controversa e genial cena final. Com esta pequena alteração, a personagem de Blanchet (interpretada por Barbara Harris, falecida em julho deste ano), no romance uma mulher com poderes mediúnicos, é transformada para o filme em uma trambiqueira que finge ser vidente para arrancar R$ 10 mil dólares de uma senhora rica, a fim de localizar um parente de sua cliente desaparecido há quatro décadas - utilizando, para isso, inexistentes poderes especiais.

A mediunidade em Trama Macabra, como o sobrenatural de Um Corpo Que Cai, é um embuste plantado na trama para dar corpo, neste caso, a uma encenação predominantemente cômica, cujo tom overreacted remete às screwball comedies dos anos 1930, de autores como Lubitsch e Hawks. Desde a cena de abertura, em que acompanhamos a primeira e divertidíssima sessão espírita de Blanche, quando a personagem é apresentada para o espectador do centro de uma bola de cristal verde e cartunesca, a narrativa é enviesada por truques e falsificações que a todo instante ressaltam os mecanismos da farsa, potencializados pelas ações dúbias dos personagens: dois casais de picaretas cujos planos se cruzam durante a segunda metade da obra. Os personagens permitem ao filme brincar com a percepção do espectador a todo instante: desde o uso de perucas para ocultar identidades e a existência de passagens falsas no cenário, até o desdobramento sobre a descoberta do paradeiro do homem desaparecido, vários elementos e imagens são incorporados às cenas para ressaltar mentiras, utilizando as regras básicas da narrativa de suspense para sustentar estas mentiras em tela antes de explorá-las comicamente em suas revelações.

A intenção de Lehman, inclusive, era nomear a obra como Deceit (em português, Enganação), um título que, embora substituído durante as filmagens, representaria perfeitamente a convergência de sua imaginação com a de Hitchcock – que já haviam sido combinadas em Intriga Internacional, quando levaram às últimas consequências o desejo de construir situações imageticamente fortes e um tanto insanas, apesar de perfeitamente críveis para a fé do olhar, situando nelas o tradicional personagem hitchcockiano: o homem inocente e ordinário, no qual o espectador naturalmente se projeta. Ambos os filmes dividem esta característica, e um mesmo desejo pela narrativa rápida, de cenas movimentadas e situações que permitiam a Hitchcock explorar diversos signos e locais com potencial imagético ou subversivo, como na perseguição sobre o Monte Rushmore de Intriga Internacional ou, em Trama Macabra, nas belas cenas filmadas no cemitério e na hilariante sequência do sequestro do padre que rezava seu culto em uma igreja católica.

A opção pelo tom de comédia farsesca também se alia às técnicas de encenação de Hitchcock (cenários elaborados com minúcia, coloridos e extremamente limpos, imagens filmadas com chroma key, o rigor formal dos enquadramentos planejados em precisos storyboards) para evidenciar Trama Macabra como um dos filmes mais anacrônicos lançados no cinema norte-americano pré-Star Wars nos anos 1970, considerando as transformações do sistema de produção da indústria e os interesses do público naquele período, identificado com abordagens estéticas mais realistas. Contextualizá-lo à história do cinema norte-americano setentista é curioso a medida que se tem como produções de sucesso daquele mesmo ano filmes radicalmente diferentes deste como Taxi Driver (idem, 1976), Rocky, Um Lutador (Rocky, 1976) e Rede de Intrigas (Network, 1976), que ganhavam a atenção do público por sua legitimidade no ambiente de produção da Nova Hollywood.

O anacronismo pode ser uma das justificativas para a recepção fria à obra, mas ver Trama Macabra hoje, com a merecida atenção, revela-o como um dos filmes mais divertidos de Hitchcock, em que o diretor se apresenta um hábil e assumido manipulador de imagens, condição essencial do cineasta. E é explicitando esta condição que Hitch viria a compor a cena que passaria para a história como sendo a última de sua extensa carreira, uma deliciosa brincadeira de percepção que sintetiza o espírito de seu cinema e sua habilidade inigualável como manipulador. Nesta sequência, Hitchcock retoma a dúvida da crença no fantástico para apresentar uma possível intervenção mediúnica verdadeira, quando Blanchet percorre de olhos cerrados uma espaçosa sala de estar até chegar ao pé da escada e apontar para o lustre cheio de brilhantes que adorna o cenário, identificando nele um diamante perdido. A encenação e a reação do personagem que divide a ação (interpretado pelo premiado em Cannes Bruce Dern) nos induzem a acreditar que a descoberta de Blanche, que resolvia o último ponto desamarrado da trama, finalmente evidenciou sua primeira ação legitimamente mediúnica. Mas, outra vez, não passava de uma brincadeira. Em um momento raro na carreira do diretor, a personagem quebra a quarta parede, olha diretamente para a lente da câmera e, com um sorriso malicioso, pisca para o espectador. Safadeza que se tornou o canto do cisne de um cineasta fundamental para a legitimação do cinema como a arte que reescreveria para sempre nosso ato de olhar e interpretar imagens.  

Comentários (12)

Victor Tanaka | quinta-feira, 05 de Setembro de 2013 - 18:24

Trama Macabra é um dos melhores do Hitchy. ♥

Ricardo Nascimento Bello e Silva | quinta-feira, 05 de Setembro de 2013 - 22:07

Sim, passou no Cult! Não tive tempo de ver, mas tenho ele em Blu-Ray graças a coleção do Hitchcock que comprei(e eu estou em falta, mas acho que consigo devorar ela até o fim do ano 😏.). Leio a crítica assim que ver o filme...😉

Eduardo da Conceição | quinta-feira, 05 de Setembro de 2013 - 22:35

Engraçado que hoje eu estava passando na Cultura e vi o filme numa das prateleiras (que estavam bem vazias), também vi Suspiria e Demons.

Luiz F. Vila Nova | sábado, 07 de Junho de 2014 - 14:32

Trama Macabra é um dos filmes mais divertidos do diretor. A direção é estilosa (grande influência para Tarantino, De Palma e os irmãos Coen), as atuações inspiradas (Barbara Harris, o destaque), o roteiro inteligente e a trilha sonora de John Willians, perfeita à proposta do filme. Vale ressaltar também a última cena do filme e da carreira do cineasta, com uma brincadeira que só poderia ter saído da mente do mestre do suspense (comprovando sua genialidade no humor também).

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