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Críticas

Cineplayers

Uma carta de admiração, escrita em primeira pessoa – as razões para Tropa de Elite 2 ser tido como o filme mais importante do cinema nacional contemporâneo.

9,0

Existem alguns recursos cinematográficos que podem ser considerados perigosos e cujo uso deveria ser determinado a ser realizado com cautela. Posso citar, por exemplo, o flashback, o zoom, a câmera lenta e a voice over. Esta última, também conhecida como narração em off, pode ser executada em primeira ou terceira pessoa, dependendo do propósito do filme em questão. O primeiro Tropa de Elite (idem, 2007) é um desses casos de filme que se vale de voice over para que a narração e narrativa sejam estabelecidas. Apesar de julgar um recurso arriscado, acredito também que é um dos grandes trunfos e “álibi” de José Padilha, diretor do longa, no que concerne às acusações de tendencionismo que a obra e seu realizador teriam. Tropa de Elite foi classificado como facista, pró-BOPE, anti-classe média e mais uma infinidade de termos, mas na verdade, se você analisar de perto, são todas classificações válidas para o personagem principal e narrador em primeira pessoa do filme, o Capitão Nascimento, e não necessariamente podem ser tidas como a visão de Padilha. Não nego e nem afirmo que o sejam, só constato que o fato do filme ser narrado mostra que o olhar em questão é do personagem mais que da obra. E assim, mais que as opiniões colocadas nela, são relevantes mesmo o tipo de discussão e reflexão que elas proporcionam. Portanto, o primeiro Tropa de Elite se fortalece por ser bem narrado pelo Capitão Nascimento. Tropa de Elite 2 (idem, 2010) é um pouco pior do que deveria ser, justamente por ser amplamente narrado pelo agora Tenente-Coronel Nascimento. Mas notem bem, eu disse “um pouco pior”, porque o defeitinho citado é quase nada diante da magnitude da obra como um todo.

Se o Capitão Nascimento pode não ser José Padilha, José Padilha não precisa ser tão crente de que pode ser utópico como o Capitão Nascimento, daí seu filme tem esse pequeno equívoco. A narração de Nascimento é tão presente nos dois primeiros atos do Tropa de Elite 2 que muitas vezes dá a impressão de didatismo, uma opção tomada talvez para não permitir que alguma parcela do grande público alvo do filme (que é definitivamente o Brasil todo, de qualquer classe) se perdesse em meio ao desenrolar da trama. Não chega a ser condenável, caso tenha sido isso o acontecido, afinal é mesmo um filme importante para ser compreendido. E mesmo que seja um vício de linguagem, também não merece uma sentença pesada, já que pode também ser visto como uma maior liberdade de expressão do narrador diante da narração. Mas o fato é que Tropa 2 vai muito melhor quando o personagem fala menos e a mise-en-scène basta para dizer o que se deve (e nesse sentido, o terceiro ato é irretocável). Só que o filme não é assim, a voice over é muito usada e é basicamente a minha única reclamação sobre ele. Daqui em diante, caro leitor, começa minha carta de integral admiração ao trabalho de José Padilha.

Se o primeiro Tropa de Elite gerou uma infinidade de discussões a respeito da postura da sociedade diante da criminalidade e do modo como ela deveria ser combatida, Tropa de Elite 2 pretende alçar um vôo muito mais abrangente. De certo modo, pode ser visto como um projeto quase megalomaníaco, pois a visão e o poder do indivíduo vão tomando proporções constantemente crescentes e se faz necessário que a percepção do público seja sempre reposicionada em perspectiva. É fundamental uma compreensão do geral e do individual, estando necessariamente mais atento ao que o senso de moral de cada um pode tomar como “certo” e “errado”. E a partir das modificações de tais noções e das novas subidas nas escalas do poder e corrupção que o filme propõe, o risco se torna maior e a queda iminente ainda mais evidente. Acontece que a queda nunca acontece. O que poderia ser um grandissíssimo tiro no próprio pé de Padilha, se comprova como o mais absoluto êxito na explanação dos pontos colocados. E como Padilha faz bem!

Aliás, Padilha e equipe, como o diretor faz questão de ressaltar assim que os créditos finais aparecem na tela, pois ele atribui a realização ao coletivo, cada um com sua função. Existe aqui uma quase repetição completa da mesma equipe do primeiro filme, com a diferença fundamental de todos parecerem mais maduros e melhores dominadores de suas artes. Da montagem de Daniel Rezende (que também foi diretor de segunda unidade) à fotografia mais podada de Lula Carvalho (no primeiro filme, uma das coisas que mais excediam era a luz estourada, que gerava além do desconforto e da urgência, uma sensação de inadequação com a realidade; aqui a luz está difusa, não busca a beleza e mantém a noção de integração absoluta com a ação), tudo parece em plena sintonia. Cabe destaque para o elenco, uma escalação espetacular como há muito não se via, desde os atores que repetem os papéis do primeiro filme aos novos, especialmente André Mattos, encarnando uma espécie da Datena político, e Irandhir Santos, grande ator pouco conhecido que aqui interpreta o segundo pilar moral do filme, o deputado Diogo Fraga. Mas a grande força motriz é mesmo o completo e complexo foco de Padilha na figura de Nascimento, aqui muito mais perdido e atormentado que no primeiro filme. E por conta do paralelo do tormento em conflito com a obstinação do personagem, a performance de Wagner Moura é ainda mais impressionante neste filme, não podendo ser classificada como nada menos que brilhante.

O filme se passa mais de uma década depois do final do primeiro Tropa, mostrando que o Capitão Nascimento não só não tinha saído do BOPE (como era seu objetivo no fim do primeiro filme) mas havia subido de patente dentro da instituição, se tornando Tenente-Coronel e comandante das operações especiais. O episódio da efetiva saída de Nascimento (sua queda pra cima, como o personagem afirma) é o ponto de partida dentro do flashback que Tropa 2 mostra logo após os créditos iniciais. Assim como no primeiro filme, a estrutura não-linear, como se a ordem dos acontecimentos devesse servir ao propósito de contador de histórias de Nascimento, é estabelecida, e o vai e vem e os multiplots são posicionados e integrados, passando a interagir assim durante todo o filme. A fluidez narrativa aqui parece muito mais evidente que no primeiro filme, pois o artifício da narração (ainda que excessivo, como já dito) não parece tão funcional na ligação com as imagens. É de fato como se a ordem narrada tivesse que funcionar como projetada em tela e cada ligação estivesse posicionada em seu devido lugar. À medida que o filme passa, melhor compreendemos o quanto a trama está interligada à dimensão da alucinação de Nascimento diante da realidade.

Nascimento é promovido a sub-Secretário de Segurança Pública do Rio e busca a todo custo fazer um bom trabalho e acabar com o tráfico nos morros cariocas. Por conta de sua postura diante do trabalho em conflito com sua vida pessoal, a condição de solidão atual do personagem pode parecer, a princípio, como uma punição pelas atitudes anteriores. E é bem verdade que Padilha introduz logo no início da narrativa alguns elementos e discursos que podem ser interpretados como defensivos, pelo modo como o primeiro filme foi interpretado por uma fatia da sociedade. Esta sociedade é retratada e criticada no filme, com tiradas sarcásticas, mas que logo perdem o teor de réplica e se comprovam como bases fundamentais do que será o desenrolar da história. Padilha não parece querer punir Nascimento, simplesmente porque Nascimento logo fará este caminho sozinho. E acima de tudo, não parece querer se justificar por nada, justamente porque não se pede desculpas pela constatação de um fato. A questão se torna a seguinte: o que difere o conhecimento de um problema do combate a ele? Se o “vilão” do Tropa 1 para muita gente era a classe média, em Tropa 2 o vilão é a paralisia.

Todos os pontos levantados no filme, e que deverão ser motivo de discussão de 10 entre 10 mesas de bar nas próximas semanas (além da nova leva de bordões excepcionais que cairão no gosto popular), não chegam a ser nenhum tipo de novidade para qualquer brasileiro que já tenha pegado um jornal na vida ou esteja a par de como funciona a máquina de corrupção no país - independente da instância na qual ela esteja ligada, todos os pontos se juntam no final. Na verdade, os pontos são obviedades, ainda que o termo possa parecer pejorativo. O roteiro de José Padilha e Bráulio Mantovani não faz nada além de colocar em questionamento a posição de corrupção de todos os meios, seja Imprensa, Estado ou Polícia. Acima do tráfico aqui estão as milícias das favelas cariocas, as mãos que as controlam, as mãos da Polícia, as mãos do Estado e as mãos que controlam o país. O sistema é quase infinito e evidente e mesmo assim parece surpreendente quando visto em cena, pois “obviedade” é palavra inexistente quando se trata da vista grossa da paralisia social empregada e perpetuada pelos cidadãos do país. Tropa 2 grita ao público que deixe de olhar para o lado e olhe para frente.

Pode ser que nada mude e possivelmente Padilha nem mesmo acredita que o filme seja capaz de algo assim, mas explanar e cutucar feridas já é tarefa suficientemente louvável, tendo em vista a inadequação e pavor de uma sociedade apática como a nossa. O conflito da utopia do Tenente-Coronel Nascimento em relação à sua postura na rede hierárquica do poder, de frente com a real deturpação ética e moral que o poder estabelece, é motivo suficiente para sair da cadeira do cinema extremamente incomodado com o nada que todo mundo faz a cada dia. E como é sintomático ver um filme assim num mês como este de outubro, em ano eleitoral onde será definida a trajetória do país pelos próximos 4 anos, no mínimo. É sintomático e preocupante pensar que a falta de consciência do absurdo do sistema nacional (e o desconhecimento da existência do próprio sistema) pode difundir uma alucinação generalizada e permitir que a democracia seja a arma mais perigosa do mundo, nas mãos de quem manda. Não sei bem dizer o que pensou José Padilha quando escolheu o plano final de Tropa 2, mas a ambiguidade entre a esperança de se abrir os olhos e o horror do que irá ser visto é um ponto de reticências bastante aterrorizante para mim. Quem sabe, depois do dia 31 de outubro, tenhamos uma visão mais clara do que é o plano final que Padilha escolheu para este que é, sem dúvidas, o filme mais importante lançado no Brasil em muito, muito tempo. Quem sabe...

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