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Críticas

Cineplayers

Infeliz o país que precisa de heróis.

7,0

Tropa de Elite (idem, 2007), o primeiro filme, e a sua sequência, Tropa de Elite 2, são filmes necessários. Como já ressaltado em quase tudo quanto é lugar, são obras que possuem muito a dizer sobre nossa época, sobre o país. Geram debates, incitam reflexões. São documentos de nossa história social contemporânea. Porém, para quem acredita que o cinema vale sobretudo pelo que mostra, e não necessariamente pelo que fala, ambos os filmes de José Padilha podem não ser tão significativos ─ ainda que não seja justo fechar os olhos e negar a qualidade do trabalho do cinema artesanal do diretor, a sua técnica, a perícia e o vigor com que encena a continuação das peripécias do capitão (agora Tenente-Coronel) Nascimento, dessa vez exercendo a função de Comandante do Bope e Subsecretário de Segurança do Rio.

Tropa de Elite atua como um ópio, um cinema que entorpece todos os nossos sentidos, nos inserindo sensorialmente dentro do que transcorre na tela, no meio da narrativa do herói em confronto aos que representam as maiores malezas do país. Nessa condição de cinema como entorpecente, a reflexão não vem exatamente de dentro pra fora, mas em Tropa de Elite se manifesta nos levando a pensar diretamente a partir do que é escancarado na superfície, num viés sociológico que, a todo o momento, levanta questões para simultaneamente empurrar verdades goela abaixo nos espectadores, amplamente satisfeitos por encontrarem na tela uma realidade que reconhecem de imediato. Há a polícia mal-intencionada, a imprensa sensacionalista e manipuladora, os corruptos políticos, entre outros, que às vezes se apresentam em cima de estereótipos que surgem em cena como caricaturas (o apresentador de TV, o “intelectualzinho” de esquerda, etc.). E um personagem disposto a vencer a luta contra a podridão do “sistema” (a ênfase na expressão, mais do que desgastada, é dada pelo próprio protagonista, que no filme a ressalta em mais de uma ocasião).

A maioria condena (não sem razão) os filmes do nosso cinema que mais se apóiam em denúncias sociais, porém há quem não se importe com um Tropa de Elite em que as questões levantadas vêm acompanhadas com a solução prática e razoavelmente eficaz da violência e do extermínio, o que gera as velhas discussões ─ que remontam de filmes estrangeiros diversos e bem mais antigos ─, acerca da materialização (no papel e na tela) de uma idéia impraticável de ocorrer com eficiência no plano real, onde tal conceito por um lado nos coloca a um passo do fascismo, e por outro beira o planfetarismo (não à toa o primeiro filme levou o grande prêmio em Berlin num júri presidido por Costa-Gravas). Agora, na continuação, o coronel Nascimento combate a corrupção no cenário político e social, e prossegue no papel de justiceiro implacável, o que pode ser sintetizado em sequências como a que ele espanca um secretário desonesto.

Para quem acredita ou defende o cinema como catarse, trata-se de um prato cheio, até mesmo porque esse parece ser um filme de verdades, mais do que um filme de indagações - e saímos de frente da tela imbuídos pela consciência, por meio da materialização de um longo discurso que rende momentos de grandes verdades (enquanto proposta de discurso, descortinando respostas sobre a condição moral do país), das quais tiramos uma lição, ao invés do filme provocar idéias e pensamentos distintos e nem tão diretos a partir do que ocorre em cena. Somos guiados a pensar exatamente através de muito do que é devidamente explicado pelo personagem ao longo de Tropa de Elite, o que faz dele um filme basicamente falado (quase tudo o que há de mais essencial é devidamente explicado antes de ser visto), e com um protagonista muito distante do âmbito de um mistério, pois o Coronel Nascimento em nenhum momento é uma figura a ser desvendada. Suas intenções são excessivamente claras para que em momento algum não deixe de corresponder no espectador o ponto de vista desejado, impondo um discurso transmitido através de imagens convulsivas como se fossem setas apontando para as respostas e soluções, ou como que trazendo à tona em nós tudo o que é preciso para nos tornar conscientes como cidadãos.

Pode-se dizer que não se trata do mesmo pensamento do diretor, mas as chances de se enxergar o discurso do personagem e do filme como um só são grandes. No filme anterior, Padilha já injetava uma ambigüidade para que o filme tanto pudesse ser encarado como fascista quanto como não-fascista, criando um personagem de traços fascistóides e colocando em sua boca um discurso que pode ou não ser o do cineasta. O fascismo se caracteriza como uma doutrina cuja ação é esmagar, na força bruta, com todos os “vagabundos” que atrapalham o bom andamento da sociedade, geralmente em torno de alguma figura que se julga detentora do direito e do saber diferenciar quem presta ou quem precisa ser eliminado da roda. Do mesmo modo que (como já mencionado) é injusto não enxergar as qualidades de cinema de ambos os Tropa de Elite, seria igualmente impossível não querer reconhecer o quanto o filme se aproxima de uma visão fascista, e quem sabe um dos seus grandes méritos seja justamente o de nos fazer perceber o quanto podemos nos fascinar com uma idéia que em tese seria completamente eficiente, mas que no fundo é espúria, por ser inviável de funcionar na prática  e estar próxima das boas intenções de vários dos tiranos que muito prejudicaram a humanidade em qualquer canto do mundo.

Não deixa de ser uma forma populista de fazer cinema (independente da ideologia que espelha), dando vazão a uma catarse coletiva que é a de todo um país, o que leva a um entusiasmo que cega parte de uma platéia para quem Tropa de Elite 1 e 2 são, além do mais, os filmes que o cinema brasileiro há muito tempo precisava. No fundo, fomos todos educados pelo modelo hollywoodyano de fazer cinema, sobretudo àquele no qual o que vale é o conteúdo, mas desde que emoldurado com uma montagem certeira, com o verniz, o roteiro redondo e o apuro técnico que vão de encontro a um público que em sua grande parte não apreciaria ou sequer perderia seu tempo com o que mais comumente se associou a cinema brasileiro: cinema novo, cinema marginal, chanchadas, alguns dos melhores exemplares da Boca do Lixo, ou mesmo Rogerio Sganzerla, Bressane, Andrea Tonacci, Eduardo Coutinho, Carlos Reichenbach, etc (apenas para ficarmos nos nome de alguns dos grandes veteranos cineastas nacionais que dirigiram pelo menos algum filme desde que José Padilha surgiu). Tropa é o filme que quase todo brasileiro aspirante a cineasta sonha fazer: conteúdo relevante e técnica impecável, que no caso calhou em ser também um digno representante de um cinema popular - não porque tenha sido sucesso de bilheteria, ou por ter usufruído de grande adesão da maior parte do público, mas por que é cinema popular em sua própria estrutura, estilo e condição, podendo ser compreendido por qualquer classe. O que também já era louvável no primeiro Tropa era ele ser um filme de gênero, algo que deveria ser melhor e mais cultivado no cinema brasileiro, ainda que, quando isso ocorreu com êxito, foi para dar contorno a um filme de tese (sobre a violência no Rio de Janeiro) que adotou a forma de um filme policial.

Foi o teatrólogo alemão Beltrold Brecht quem proferiu a famosa sentença “Infeliz o país que precisa de heróis”. José Padilha nos deu um herói, o velho Nascimento. A imagem da ética e da retidão, em luta contra os nossos maiores vilões: a violência e a corrupção. Mas atenção à problemática da palavra “herói”, pois Coronel Nascimento talvez seja um herói como aqueles que só existem na ficção. Um tipo que se ama ou detesta, mas que ninguém esquece. E que ganha muita sustentação e credibilidade pelo carisma e tour de force de Wagner Moura, o que nos faz lamentar que o cinema brasileiro (e muito menos a TV) dificilmente dará ao ator um outro papel com densidade semelhante. Ainda assim, tendo em vista que ator e personagem se casam tão perfeitamente, será que a figura do soldado Nascimento (e consequentemente ambos os filmes) sobreviveria tão bem sem o trabalho de Wagner Moura? O que restaria de Tropa de Elite com um outro intérprete de bem menos talento e calibre? Temo em pensar que, sem a presença de seu grande astro, o filme, mesmo com toda a sua retórica e a habilidade do seu diretor, acabaria por se esvaziar e expor a sua catarse e denúncia social como pouco mais que um frágil castelo de cartas.

Texto retroativo da série Clássicos Brasileiros

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