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Críticas

Cineplayers

Caça e caçador. Justiça ou vingança.

7,0

Harlan DeGroat (Woody Harrelson), traficante de aparência suja e olhar doentio, toma o cachorro-quente de sua companhia, atira o pão fora e enfia a salsicha na garganta da mulher até ela engasgar, no maior estilo “Killer” Joe Cooper. Eles estão num drive-in, e o homem do carro ao lado, por intervir, é espancado por Harlan. Russell Baze (Christian Bale) toca sua dura vida de maneira honesta, embora o emprego numa fornalha de aço não lhe permita tirar o pai e o irmão da situação difícil em que se encontram ou dar um passo adiante no relacionamento com a namorada Lena (Zoë Saldaña), pela qual é apaixonado. O confronto de personalidades desses dois personagens (acentuado pelos momentos em que eles são apresentados: o primeiro numa noite mergulhada em sombras, o segundo em dias claros) remonta à caça de um fotógrafo a um serial killer em O Último Trem (The Midnight Meat Train, 2008), thriller independente exibido no drive-in do prólogo. Eis uma síntese precisa do filme de vingança com subtramas e aspirações de drama indie americano Tudo Por Justiça (Out of the Furnace, 2013).

Comedido na construção da narrativa, Scott Cooper reserva o arco principal para além dos 40 minutos iniciais de projeção, dedicados à interiorização de Russell. Cabeludo e de barba por fazer, o protagonista tem tão pouco tempo pra si quanto para sua namorada; o dia é dividido entre o trabalho na fábrica, visitas ao pai, bastante doente e acamado em sua humilde casa, e ao irmão, enterrado em dívidas e perturbado pela Guerra do Iraque. Ao ritmo típico de uma produção independente, a intercalar situações secas com elipses e silêncios, o mundo ao redor de Russell surge repleto de significados. Os ambientes são apertados e de teto baixo, geralmente em tons de marrom que só transmitem tristeza, a direção de arte marcada por mobília pobre e antiga, a trilha sonora, quase inexistente, realçando a paisagem desoladora, fotografada friamente etc. Tão sufocado em sua cidade-natal quanto pela própria vida que toca, Russell nada mais é que uma metáfora da decadente North Braddock.

Afeito a todo tipo de convenções, Cooper explora o expressivo cenário de uma cidade-satélite de Pittsburgh e o subtema da guerra inspirado em um clássico do cinema: O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978). Assim como o protagonista (Robert De Niro) do clássico de Michael Cimino, incapaz de se identificar com o próprio lar após o horror do Vietnã, Rodney Baze (Casey Affleck) vive entre idas e vindas ao Iraque – apesar do trauma que o conflito lhe impôs – por falta de perspectiva profissional. Assim, o diretor e corroteirista demonstra habilidade em utilizar uma referência externa para um contexto muito próprio, explorando problemas atuais na política estadunidense atual, sobretudo econômica (como pode uma das indústrias de aço mais tradicionais do mundo se render à China?) e social (a falência da saúde e o descaso para com veteranos de guerra).

A mesma riqueza já não se observa na elaboração dos personagens. Seja pelo excesso de ingenuidade e complacência dos personagens de Willem Dafoe e Forest Whitaker – características incompatíveis com as profissões de bookmaker e policial que interpretam, respectivamente –, seja pelo pouco tempo em tela de uma Zoë Saldaña pouco expressiva e um Sam Sheppard mudo, a percepção é de um bom elenco subaproveitado. E se o antagonista caricato tem de se valer do infinito carisma de Woody Harrelson para ter o mínimo de sustentação, ao menos Casey Affleck – e sua cara de garoto que mascara um poço de dor e intensidade –  recebe um papel com estofo e um par de cenas onde pode, novamente, brilhar. Todos, porém, periféricos a Christian Bale, cada vez mais maduro e capaz de carregar um filme nas costas. Sua interpretação confere complexidade ao que há de mais interessante no roteiro de Cooper e Brad Ingelsby: a analogia da caça.

Em O Franco Atirador, Michael experimenta a enorme distância entre caçar veados com os amigos e olhar nos olhos do inimigo e disparar uma arma. Aqui é diferente: Russell avista a caça e hesita.  Fosse um animal, Russell estaria na base da cadeia alimentar, como sua posição social desprivilegiada revela (além de seu estado de espírito, machucado demais para se ocupar de tal hobby). Por isso, ele jamais conseguiria matar um animal indefeso. Inocente. A não ser que um outro animal lhe ferisse de algum modo. Talvez seja esse o único modo de seu instinto predatório aflorar; de Russel, a caça, enfim se sentir confortável na posição de caçador. Mas aí já não se sabe se é tudo por justiça ou vingança.  

Comentários (11)

Rodrigo Torres | segunda-feira, 07 de Abril de 2014 - 00:37

É mesmo, Lucas. Ao ver, eu lembro que associei essa cena a mais um dos inúmeros clichês (no texto eu pego leve, mando o eufemismo \"convenções\" rs), nem me lembrando da referência em Goodfellas. Bem lembrado!

Raphael da Silveira Leite Miguel | terça-feira, 08 de Abril de 2014 - 23:50

Fiquei com um pé atrás quando ví diversas comparações com O Homem da Máfia, entretanto, a crítica está muito bom, enxuta e de fácil leiura. A comparação com O Franco Atirador deu até uma pontinha de vontade de ver...

MARCO ANTONIO ZANLORENSI | domingo, 20 de Julho de 2014 - 14:18

Gostei muito do filme, visualmente impecável, mister Bale mostrando sua capacidade, como o celular foi parar na mão da polícia? Não sei, então somente umas coisinhas de leve que passaram, este é um filme sobre raízes, sobre você não vai sair de onde nasceu por nada, mesmo que isso custe sua felicidade, ou mesmo que na, maioria das vezes, seja a única maneira que você conhece de sobrevivência! OTIMO FILME!

Lucas Souza | quinta-feira, 21 de Agosto de 2014 - 15:33

Nota 7,0 está bastante justa...

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