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Críticas

Cineplayers

A Salvador de Heitor Dhalia.

7,5
Tungstênio é um metal descoberto em 1871 que tem como peculiaridade ter o ponto de fusão mais alto entre todos os metais, utilizado, inclusive, para fazer explosivos. Justamente por isso batiza a HQ de Marcelo Quintanilha, que enfoca a vida de quatro pessoas que moram no litoral de Salvador. Lançado em 2014, conquistou o prêmio de melhor quadrinho policial no 43º Festival de Angoulême, o maior da Europa, o que o definitivamente chamou a atenção. 

O traço em preto e branco e que abusava de perspectivas distorcidas causou uma sensação entre conhecedores do gênero e lembrava, apesar de todos os méritos como obra de arte isolada, um storyboard de filme, graças à agilidade dando o ritmo de seu desenho e de sua narrativa. E ir para o cinema foi, digamos, um pulo: o interessado foi Heitor Dhalia, que já havia adaptado o romance O Cheiro do Ralo para os cinemas, um clássico cult do quadrinista Lourenço Mutarelli.

A forma que Dhalia encontrou para dar forma ao filme foi, segundo o mesmo, a mais fiel possível: na história sobre o ex-militar Seu Ney, o traficante Cajú, o policial corrupto Richa e sua mulher Keira e suas interações após os dois primeiros denunciarem pesca ilegal com bomba ganha uma transposição visual exagerada e delirante. 

Abunda uma fotografia extremamente contrastada e saturada, câmera em contra-plongée (apontada de baixo para cima), lentes grandes angulares (que aumentam o campo de visão e distorcem as extremidades) e longas sequências sem corte. Enquanto os personagens discutem, gritam e se agridem, o narrador sarcástico feito por Milhem Cortaz e os muitos flashbacks e flashforwards da montagem intervém o tempo todo.

Enquanto orbita ao redor desse conflito principal, Tungstênio esbanja energia. A grande energia bruta da história foi comparada ao diretor como “quase um conto”, e é uma comparação que faz sentido. O filme tem uma distinta set-piece que ocupa boa parte de sua metragem, onde explora as vidas de seus personagens em meio a ação, entrando em suas cabeças e expondo sua rotina, seu íntimo, seus demônios, suas imperfeições. Depois disso, essa estrutura “encerrada em si mesmo” perde grande parte da força em seu epílogo, apenas uma consequência do que vemos no início e nem de longe esbanjando o mesmo interesse ou peso. 

Ainda que se pretenda em certo nível um recorte da realidade, representando uma Salvador com atores negros e soteropolitanos em épocas que novelas de televisão são criticadas por “embranquecer” a narrativa para torná-la “tipo exportação”, Dhalia também finca os pés no gênero policial e como descrito acima faz um filme hiperestilizado, sempre um tom acima, não deixando ser engolido pelas pesadas temáticas de racismo, relacionamento abusivo e militarismo que seu filme resvala. É uma força e também é um problema, no final das contas. Não é um defeito propriamente falando (senão coitado de diretores como, digamos Brian De Palma ou Takashi Miike) mas certos recursos - especialmente a narração em off - podem ser um pouco exagerados, tirando o valor simbólico do silêncio.

De qualquer forma, mesmo em um filme que combina méritos e consciência de estilo com uma certa derrapada em seu ato final, Dhalia mostra regularidade refinando suas narrativas de gênero resvaladas em problemas sociais e protagonistas complicados, mostrando força em encenação dentro do panorama de um país (e de um mundo, na verdade) acostumados a produtos básicos e bem formatados que se apoiam puramente na temática. 

Aqui é diferente, e o filme caminha na corda bamba do exagero e do errático, apontando a câmera com convicção para nossos problemas sociais mas extraindo na verdade da encenação a grande força de um conflito regado à divagações, berros e disparos. Tungstênio é “quadrinhesco” até dizer chega, mas também tem uma marca inconfundível como sexto filme de um dos cineastas pernambucanos mais “diferentões” de sua geração.

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