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Críticas

Cineplayers

DR de 5 dias.

9,5

O que você faria numa situação de perigo: pensaria apenas em si ou cuidaria antes de sua família? Esse questionamento pode parecer uma peça de marketing de Turistas, mas é uma questão que pode incomodar bastante, pois jamais saberemos a resposta – por mais que pensemos o contrário – até algo assim ocorrer. No filme de Ruben Östlund, uma falsa avalanche nos Alpes durante as férias de um casal com filhos acaba completamente com uma estrutura familiar rígida, clássica, aparentemente perfeita, que reprime seus defeitos em prol do “bem estar” das crianças. É o ímpeto covarde (e egoísta) do marido, Tomas, ao fugir e deixar a família num momento em que quase ocorreu um desastre, deixando a esposa para cuidar sozinha dos filhos. E quando ele percebe que se tratava de uma falsa ameaça e volta à mesa do restaurante onde estavam, nada permanece como antes.

Tentar buscar um Bergman (como fiz durante a sessão) parece-me, neste momento, um tanto ingênuo: diferentemente do cinema do sueco, não há situações-limite ou um contexto desgastante para o surgimento dos conflitos dramáticos de Turistas. O ato da fuga apenas importa enquanto impulsionador do atrito, mero pretexto para se discutir questões bem mais complexas. Questiona-se, na verdade, os próprios papéis da figura masculina e feminina no bojo da família moderna.

Não se trata de pessoas boas ou ruins, de uma mãe bacana e de um pai escroto, mas da dificuldade de admitir os próprios erros, encarar o possível monstro que reside dentro de nós – e se revela, a revelia, numa situação de perigo. O extravaso fácil desse sentimento pelo berro nas distantes montanhas, pela cerveja no bar, ou seja, certa maneira de fugir da problemática.

O silêncio, no filme de Östlund, se impõe como agonia, verdadeira potência dramática, que diz muito mais do que qualquer diálogo. Quando Ebba fala tudo o que pensa em um jantar com um casal de amigos, a câmera fica no rosto de Tomas. Há nessa imagem muito do que precisamos saber sobre todo o conflito interno (e externo) dos personagens: a mãe que não se contenta com a covardia do homem (tanto por isto representar um abandono instintivo dos filhos quanto por desconstruir a ideia demarcada do “homem protetor”) e a falta de reconhecimento disso por parte dele - o questionamento do papel paterno naquela família - ao passo que há o rosto claramente incrédulo do pai, que não consegue admitir o que fez, entregando apenas o silêncio como resposta, se corroendo por dentro pois seu ato contraria seu ego de macho alfa, desmorona sua função estabelecida culturalmente na instituição familiar.

Assim, desloca-se a mulher e o homem dos seus papéis condicionados socialmente: Ebba está em pleno processo de descobrimento pessoal, começando a entrar em contato com ideais libertárias de casamento, ao passo que Tomas se depara com a desconstrução involuntária do macho alfa, do patriarca clássico. Nesse sentido, a sequência potente da (quase – e é importante pontuar isto) catarse revela todo o esfacelamento desse conceito enraizado do “pai”, na fragilidade do choro compulsório.

O ambiente interno modernizante, de paletas monocromáticas, onde a iluminação parece excessivamente artificial, e onde a dimensão do íntimo se perdeu (toda a discussão se dá de fora do quarto), tal como o branco frio da neve, constroem uma sensação de opressão, desconforto. Por outro lado, existe uma veia cômica fundamental para o cinismo do filme, construída pela vergonha alheia, o constrangimento do silêncio, da negação dos erros, dos debates em momentos adversos.

E o desfecho, última cena especificamente, que me parecia bem clara em seu significado – e problemática -, repensando me soa bem mais enigmático, inconclusivo. Admito que não consigo estabelecer um sentido definitivo. Seria a reorganização da família? Parece-me um final muito cômodo para uma obra tão pedrada. Ou seja, acho essa a interpretação menos plausível. Poderia estar estampado ali, na imagem, todo o desconforto da situação, as intrigas veladas, os atritos.

Todavia, decifrar esse final me parece uma tentativa de fechar o filme. Não gosto tanto disso. Prefiro que ele sobreviva sempre – e que eu permaneça me perguntando o que a última cena, tão forte, está querendo dizer.

Visto no Janela de Cinema do Recife 2014

Comentários (3)

Italo | quinta-feira, 30 de Outubro de 2014 - 01:46

Filmeco

Alexandre Marcello de Figueiredo | domingo, 26 de Julho de 2015 - 17:39

A cena final, no ônibus, mostra a mãe tomando uma atitude que, segundo as convenções, o pai é que deveria tomar.

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