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Corpo que Cai, Um

(Vertigo, 1958)
8,8
Média
1093 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

O cinema e/é o sonho.

10,0

“Necrofilia pura!”

Foi assim que Alfred Hitchcock definiu o filme Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958) durante sua famosa entrevista-ensaio com o cineasta e crítico de cinema François Truffaut. Pode parecer uma ideia radical, mesmo saindo da mente fértil do maior aficionado pelo suspense do cinema, mas a verdade é que se trata de um dos filmes mais corajosos de Hitchcock, por uma série de razões – a começar, por essa questão da morte associada ao sexo. A história do homem que se apaixona duas vezes pela mesma mulher, ou uma vez por duas mulheres, ganha um contorno sobrenatural quando a figura feminina se repete na trama quase que como uma forma fantasmagórica.

No entanto, o sobrenatural nunca teve vez no cinema de Hitchcock, por mais que ele tenha flertado diversas vezes com essa possibilidade. A razão principal está no fato de que seus filmes não costumam tratar do ocultismo. Adepto à narrativa clássica, ao cinema de gênero e ao ritmo ágil, Hitchcock só coloca em cena aquilo que deseja que seja assimilado pelo espectador na superfície. Suas imagens falam por si só e não escondem nada além daquilo do que realmente compõem para o entendimento claro e imediato. Claro que isso nunca o impediu de trabalhar com tramas mirabolantes, mas no sentido estritamente imagético seus filmes são o mais direto possível.

Por isso a câmera age se fazendo invisível, deixando que a narrativa corra fluentemente sem tornar-se perceptível ao olhar do espectador, trazendo a comum imersão total deste para dentro do universo ali narrado e eliminando qualquer barreira física na relação que nasce a partir do início do filme. Um Corpo que Cai é cuidadosamente construído nesse esquema narrativo clássico, e de tão sutil a câmera se mantém o tempo todo imperceptível, mesmo nos momentos em que Hitchcock manipula claramente as imagens, como no uso do filtro de névoa na sequência em que James Stewart segue uma Kim Novak aparentemente possuída pelas ruas de São Francisco. A atmosfera criada ali é funesta e onírica, reafirmando as suspeitas sob o possível caráter sobrenatural da história, sem que o espectador se dê conta de imediato do efeito que esse truque tem sobre sua percepção da trama.

Ainda em sua entrevista com Truffaut, Hitchcock reafirma esse uso de efeitos característicos para transformar as aparições de Madeleine/Judy em um momento fantástico. Se a princípio, no primeiro ato, James Stewart se apaixona por Madeleine, uma loura aparentemente possuída por um ancestral, no segundo ato Judy surge através de uma iluminação esverdeada, como que retornando do mundo dos mortos – e por mais que a cor do cabelo, a maquiagem, o figurino e o penteado sejam diferentes dos de Madeleine, a sensação mórbida e inexplicavelmente atraente de déjà vu é inevitável. Embora ainda sedutora, ela não é exatamente Madeleine, e por isso o protagonista fará de tudo para recriar uma mulher morta, como se somente assim pudesse voltar a deseja-la sexualmente. Ou pura necrofilia, como descreve o mestre.

Mas a grande sacada em toda essa estrutura narrativa montada até a metade do segundo ato, e o que faz de Vertigo um filme tão corajoso na carreira de Hitchcock, se dá quando Scott e a câmera são separados pela primeira vez no filme e ficamos pra trás junto com ela, a sós com Judy. É a primeira vez que ficamos sem ele e isso já causa um leve desconforto, mas não a ponto de quebrar o encanto da ilusão fílmica. Scott marca um encontro para mais tarde, sai do apartamento e sobra somente Judy, que até então era um objeto de mistério filtrado sempre pelo olhar de Scott/câmera/espectador. Depois de um breve silêncio, ela se vira lentamente e olha direto para a lente, denunciando subitamente a nossa consciência como espectador e a presença da câmera, e assim desmoronando com a até então distância e segurança nossa de meros observadores. Com um simples olhar, Judy quebra a quarta parede, desnuda as estruturas cênicas, rompe o encanto da narrativa até então linear e segura, e reverte todas as perspectivas de Um Corpo que Cai, revelando através de um flashback todo o segredo da trama apenas para nós.

Agora já não somos mais cúmplices de Scott, nem estamos mais absortos dentro daquela ilusão fílmica. Agora somos confidentes de Judy, uma personagem que tem a ciência de sua condição fictícia e irreal dentro daquele universo cinematográfico farsesco, e que por isso pede pela nossa compreensão, clemência e cumplicidade. Agora sabemos seu segredo, conhecemos a engrenagem por trás da superfície imagética, e de repente é nosso antigo parceiro Scott que se torna o foco de observação e incerteza, já que não temos como prever sua reação diante da revelação da verdade.

Ele só voltaria a ousar dessa forma, na quebra da quarta parede, em seu derradeiro trabalho, Trama Macabra (Family Plot, 1976), com a sacana piscadela de Barbara Harris para o espectador, também denunciando o caráter farsesco do filme e reorganizando toda sua perspectiva através de um simples gesto. No caso de Vertigo, tudo é ainda mais poderoso, por se render totalmente, a partir desse ponto, à questão fetichista em volta da dubiedade do desamparo e da sedução da figura feminina (a femme fatale do filme noir, em especial). A repetição da mesma atriz para dois papéis, uma possível herança do grande F.W. Murnau em Fantasma (Phantom, 1922), realça a dicotomia que se estabelece entre morte e sexo, entre o lado bom e o ruim do ser humano, entre mortos e vivos (e foi de grande influência para cineastas como David Lynch), e ainda coloca em evidência o maior e mais sutil caso de amor necrófilo do cinema, hoje reconhecido por muitos como o maior filme de todos os tempos.

Hitchcock reproduzia aqui a mística do sonho. Um Corpo que Cai tem o efeito idêntico ao de um sonho, nos sugando para seu universo da maneira mais natural possível, nos fazendo crer em tudo ali sem a percepção entre o real e o imaginário, nos induzindo a transitar invisíveis no papel de observadores da ação corrente, para depois jogar um balde de água fria e reproduzir a sensação estranha do acordar durante um pesadelo – aquele momento estranho do sonho em que de repente nos reconhecemos ali e nos damos conta de que estamos sonhando, percebendo enfim os mecanismos da mente e as estranhezas da atmosfera, que até então tinham passado despercebidas (De Palma faria algo parecido em Femme Fatale [idem, 2002]). Não à toa, nos créditos iniciais, a câmera invade os redemoinhos nos olhos de James Stewart e vai se aprofundando em sua cabeça, como que nos colocando ali no meio do sonho e nos abandonando ali – naquele universo comandado pelo mistério, pelo desconhecido, pelo desejo sexual, pela aproximação excitante da morte, habitado por uma bela mulher, por rostos repetidos, situações cíclicas, efeitos visuais de distorção e vertigem. E com isso ele evoca ícones imprescindíveis e elementares no cinema, como a mulher fatal, o protagonista de fácil empatia, o vilão pastiche, o crime, o disfarce, a investigação, a reviravolta mirabolante e o desfecho cataclísmico. Um Corpo que Cai é isso, o cinema como extensão do sonho.

Comentários (22)

DEMETRIO ISLAUSKAS DEMOSTENES IVANOFF | quinta-feira, 29 de Janeiro de 2015 - 10:18

O meu predileto do diretor é A Dama Oculta. No entanto caro jovem Heitor esse também é nota 10. Não concordo com teu escrito em um ponto: A repetição da mesma atriz para dois papéis. Como assim dois papéis? Ela fingia ser a outra, não o era. Ou estou caducando? No resto um escrito pertinente e que nos faz pensar. Genial. Mantenha-se escrevendo e distante do rock meu filho.

Heitor Romero | quinta-feira, 29 de Janeiro de 2015 - 11:17

Demetrio, é verdade, mas isso é um segredo ou incerteza até determinado ponto do filme, por isso eu enxergo Madeleine e Judy como personagens diferentes, embora sejam de fato a mesma mulher fisicamente.

E muito obrigado a todos pelos elogios :)

Luiz F. Vila Nova | quinta-feira, 29 de Janeiro de 2015 - 15:52

"por isso eu enxergo Madeleine e Judy como personagens diferentes, embora sejam de fato a mesma mulher fisicamente."

Sem dúvida.

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