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Críticas

Cineplayers

O bom e velho cinema inglês.

8,0

No último Festival de Cannes, o ator Malcolm McDowell foi um dos homenageados pelo conjunto de sua carreira (que inclui mais de 150 filmes), relembrando vários momentos de seu trabalho no cinema e no teatro, numa conversa com o crítico francês Michel Ciment, entrecortada por projeções de trechos de sua filmografia. Citou James Cagney como seu maior ídolo e influência, e Lindsay Anderson como seu diretor favorito, que o revelou muito jovem em seu primeiro papel em Se... (If..., 1969), Palma de Ouro em Cannes, que o ator descreveu nessa recente ocasião como revolucionário por ter atacado o establishment e o sistema de educação britânico. Foi vendo a cena em que Malcom está raspando o bigode em If... que Stanley Kubrick o escolheu para o papel principal de Laranja Mecânica, e o próprio Lindsay Anderson sugeriu ao ator que interpretasse o personagem no filme de Kubrick como na cena em If... onde sorri (conselho que Malcolm diz ter lembrado durante toda a filmagem).

Quatro anos depois de Se..., Malcolm e Lindsay Anderson se reuniram novamente para essa sátira implacável contra as organizações sociais, Estado, igreja, ciência, capitalismo e a necessidade do ser humano em lutar para chegar ao topo da escalada do sucesso. Inspirado em uma idéia sugerida por Malcolm, Um Homem de Sorte é quase uma versão moderna do Cândido, de Voltaire. Travis (o protagonista de If...), agora mais velho, tem que enfrentar inúmeros obstáculos para vencer na vida, começando como vendedor de café e outras mercadorias até chegar ao mercado financeiro internacional.

Mas os caminhos são árduos demais, repletos de agruras e peripécias, em um verdadeiro épico contemporâneo que repassa vários setores conservadores e progressistas da sociedade britânica dos anos 70, uma odisséia com três horas de projeção pelos quatro cantos do Reino Unido sobre a ascensão e queda de um pré-yuppie, que é mais um fantoche do que real dono de sua existência numa sociedade que mais o destrói do que o acolhe, fazendo com que o personagem sofra radical transformação de personalidade. O diretor Anderson amplia o seu enfoque contestador abandonando a abordagem do micro-universo de um colégio (na violenta e ao mesmo tempo poética crítica ao sistema escolar em inglês em If...) em direção ao macrocosmo da sociedade em sua totalidade em Um Homem de Sorte.

Trata-se de uma história alegórica e surrealista em várias passagens, como na cena em que, depois de se perder em suas andanças no norte da Inglaterra, encontra uma igreja onde vai roubar comida na mesa de oferendas para a próxima comunhão. Uma das beatas que estavam por ali o surpreende no ato, mas em vez de se escandalizar, ela o adverte de que aquela é a comida de Deus, e então o abriga no colo, tira um dos seios para fora, e tal qual um bebê o dá de mamar para o protagonista se alimentar. “Você é só uma criança”, ela diz. Ou então quando Travis aceita por dinheiro ser cobaia de uma pesquisa cientifica, mas chegando ao hospital em que passaria pela experiência, se depara com pacientes mais antigos que estão se metamorfoseando em animais.

Lindsay Anderson era um diretor que priorizava mais o conteúdo do que a forma, o que possivelmente o tornou um cineasta menos reconhecido do que deveria, sobretudo por pertencer a uma época repleta de cineastas obcecados por renovar a linguagem. No ótimo elenco (que inclui a então jovem e belíssima Helen Mirren, como a paixão do protagonista), alguns atores desempenham papéis múltiplos (e alguns deles repetiriam seus personagens em outro filme do diretor, o fraco Hospital de Malucos, que fecharia uma espécie de trilogia sobre a sociedade inglesa). De quebra, Um Homem de Sorte tem uma trilha com canções muito boas, compostas por Alan Price (então tecladista do grupo The Animals) especialmente para o filme.

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