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Críticas

Cineplayers

O estranho filme de Anton Corbijn.

8,0

Um homem vai preparando meticulosamente as peças que formarão, num futuro breve, uma arma letal. Ele apara, parte, encaixa peças de metal e monta artefatos, ajusta a mira, testa o produto final, tudo com cuidado e atenção, quase como se fosse um cirurgião realizando uma operação extremamente delicada. Na verdade, ele está, e o resultado que sairá dessa “operação” definirá os rumos de sua vida. E por mais distante que isso possa parecer para quem assiste Um Homem Misterioso, ao menos no momento em que essas sequências tomam forma de imagem, ele tem plena consciência disso.

Esse pensamento de futuro, uma espécie de previsão do que pode vir acontecer na própria vida, dá o ritmo de boa parte da narrativa do filme de Anton Corbijn, quando o personagem principal, interpretado por George Clooney, parece realmente acreditar que pode ter o controle sobre o próprio percurso. Na sequência dos créditos iniciais, ele percorre um túnel longo, primeiro captado de perfil, quando é quase impossível definir sua imagem claramente, em seguida pela nuca, onde o plano revela à frente a luz chegando cada vez mais próxima. É possível afirmar que este plano é capaz de definir o personagem e a narrativa quase totalmente, sem que nenhuma fala seja colocada.

Clooney é o homem misterioso do título nacional, ou simplesmente “o americano”, como no título original, que chega a uma cidade no interior da Itália para executar sua última tarefa, na profissão que o define: um assassino de aluguel. A superfície do americano, assim como a justificativa que ele dá ao padre local para sua estadia, é escusa, tal qual seu perfil é proposto no plano do túnel. Mais que um indivíduo, o personagem é um tipo, uma função, reflexo de suas ações. Para que elas sejam executadas, pouco importa qualquer explicação sobre sua vida pregressa ou relações afetivas que ele possa ter tido. O público deverá acreditar que ele é simplesmente um assassino frio, pois é exatamente essa a visão que ele tem de si mesmo.

A questão que problematiza essa crença é justamente a atenção que Corbijn dá aos longos planos onde o personagem passa montando a arma. Perto do final do filme, compreenderemos que a arma tinha uma função específica em sua confecção, mas até determinado ponto na narrativa, ela teria um direcionamento específico, determinado pelo próprio personagem de Clooney. Ele é contratado para construir a arma, para um último serviço que não será realizado por ele. Mas, na teoria, a consicência do personagem está colocada desde sempre. A arma que ele constrói tem como finalidade lhe tirar a própria vida. E ele sabe e deseja este fim.

Apesar das obscuridades colocadas no filme, tanto pelas poucas informações dadas frontalmente por Corbijn, quanto pela interpretação sutil de George Clooney, somos apresentados a um personagem que é ambíguo, mesmo quando aparenta uma frieza incondicional. A mulher que ele assassina na sequência inicial do filme poderia ou não ter qualquer relação íntima com ele, mas o ato extremo nos faz pensar que ele seja incapaz de ter qualquer tipo de envolvimento humano com outro ser, seja lá pelo motivo que for. O que mais impressiona é que, à medida que o filme corre e tudo parece muito evidente em suas ambiguidades, as respostas vão aparecendo nas entrelinhas, sob nuances escondidas por debaixo da casca de mistério. Quanto mais Clooney parece esconder quem é, mais claras ficam as razões para suas escolhas.

O ponto de mutação fundamental dentro de Um Homem Misterioso é a inserção da personagem da prostituta, no meio do segundo ato. Com ela, o personagem de Clooney divide uma cena longa de sexo, estranhíssima em sua decupagem, mas que ressalta a atenção que ela adquire perante o olhar do homem. Ela, assim como ele, consiste num ser que vive às margens da sociedade, cuja vida parece condicionada a uma escolha (própria ou circunstancial) por um caminho também marginalizado. Uma prostituta e um assassino, de certo modo, são a mesma coisa, pois estão localizados fora de um centro da convenção moral social padrão. De tal modo, o encontro com ela efetiva uma lógica de espelhamento, onde o que ela é, ele também é ou deve ser. É então que o personagem passa pela transformação definitiva de sua trajetória, quando passa a desejar a continuidade ao invés do fim. Do fatalismo, nasce a esperança. Mas uma coisa continuará imutável: a crença no controle de si mesmo.

O estranhamento dessas longas sequências da construção da arma, as cenas de sexo entre o homem e a prostituta, são pontos que elevam Um Homem Misterioso a um patamar de reflexão maior que sua trama aparentemente propunha. Porém, são duas cenas que pontuam o último ato do filme, que fazem a obra realmente relevante e idiossincrática. Quando confrontado com a mulher que deverá executar o serviço para o qual a arma foi criada, um duelo silencioso e “sem ação” se desenvolve, culminando num plano geral dos dois personagens divididos pela passagem de um grupo de crianças que acabara de descer de um ônibus escolar. No tempo do filme, não existe espaço para a honra de antigamente, dos faroestes à la Sérgio Leone, onde antes da arma ser sacada, um olho encontrava o outro. Aqui, o confronto final será realizado à distância, sem que um saiba das intenções do outro. De certo modo, uma retidão ética que já não existe mais.

A outra sequência é ainda mais impressionante e misteriosa, onde o caminho final percorrido pelo personagem de Clooney é tomado por um tom melodramático, de filmes como os de Douglas Sirk. Agora, diferentemente do plano dos créditos iniciais, Clooney é focalizado de frente, quase em close, desnudado plenamente e exalando emoção e sentimentos por todos os poros e ferimentos. O homem que antes acreditava que colocar fim na própria vida era o caminho para sua redenção, decidiu reverter seu controle para atingir uma redenção utópica. O filme reflete essa utopia, quando a fotografia enaltece um lirismo fatídico. A imagem Sirkiana resume um discurso de que pode haver, sim, o destino e que para ele você deverá seguir, seja pelo caminho que for. Anton Corbijn eleva sua câmera para um ponto onde aparentemente Sirk e Leone permaneceram esquecidos pelo grosso do cinema contemporâneo. Um lugar onde o cinema de mistério e o estudo de um personagem não precisam necessariamente de didatismo de botequim para se fazerem lógicos, mas podem se valer da linguagem para criar uma experiência. Estranha. Estranhíssima. Excepcional.

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