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Críticas

Cineplayers

“Qual Kennedy?” “Qualquer um”

7,5

Dentre a geração de profissionais que tiraram o brevê de cineasta fazendo muita televisão ao vivo nos anos 50, e que incluía gente do calibre de Sidney Lumet, John Frankenheimer, Sydney Pollack e Robert Mulligan, o cara mais talentoso atendia pelo nome de Arthur Penn. Penn já tinha 10 anos de estrada, 4 filmes no currículo e incontáveis brigas com os estúdios [ele foi demitido no meio da produção de O Trem (The Train, 1964) por se desentender com o produtor Burt Lancaster, e viu Caçada Humana (The Chase, 1966) ser inteiramente remontado à sua revelia), quando dirigiu Bonnie & Clyde - Uma Rajada de Balas (Bonnie & Clyde, 1967). Ele podia nem ter consciência do que estava fazendo, mas a extrema violência da sequência final tornou obsoleto todo o cinema americano que se fazia até então. Embora menos famosa, é possível afirmar que, em termos históricos, a saraivada de balas que fecha o filme, é até mais importante que a cena do chuveiro de Psicose (Psycho, 1960). A ruptura foi tão grande que também não é errado dizer que sem Arthur Penn, não existiria a geração das escolas que tomaria conta da nova Hollywood pelos 10 ou 15 anos seguintes, e nomes como Scorsese, Spielberg, De Palma, Lucas, Coppola, Bogdanovich, Friedkin, Ashby e Rafelson, hoje veteranos e consagrados, provavelmente seriam ilustres desconhecidos.

Mesmo dirigindo poucos filmes, Penn sempre se manteve fiel à sua temática de crítica ao sonho americano. Isso fica claro pelos três longas-metragens que vieram logo na sequência: o pouco visto Deixem-nos Viver (Alice´s Restaurant, 1969), o faroeste desmistificador Pequeno Grande Homem (Little Big Man, 1970), e, na falta de uma melhor definição, o neo-noir Um Lance no Escuro (Night Moves, 1975).

Em Um Lance no Escuro, Gene Hackman (que já havia trabalhado com Penn em Uma Rajada de Balas, e voltaria a fazê-lo ano mais tarde em O Alvo da Morte [Target, 1985]) interpreta Harry Moseby, um ex-jogador de futebol americano que é obrigado a abandonar o esporte por causa de uma contusão. Sem uma verdadeira vocação, e orgulhoso do modo como rastreara o paradeiro do pai que não conhecera na infância, ele resolve se tornar um detetive especializado em encontrar pessoas desaparecidas ou flagrar a pulada de cerca de maridos e/ou esposas adúlteros. Moseby é fiel ao seu estilo rudimentar de investigação, mais baseado no instinto do que na bala (não à toa, são poucas as vezes que o vemos empunhando um revólver). Por isso mesmo, e apesar da insistência da sua esposa Ellen (Susan Clark), ele recusa por diversas vezes a proposta de trabalho no moderno escritório de seu amigo – e concorrente – Nick (Kenneth Mars).

É justamente de Nick que vem a indicação do seu novo caso. A ricaça e ex-diva de Hollywood, Arlene Iverson (Janet Ward), quer saber onde está sua filha adolescente Delly (a estreante Melanie Griffith). A investigação o leva ao Novo Mexico e à Florida, e a trombar com vários personagens que podem ou não estar relacionados com o desparecimento, como o diretor de dublês Joey Ziegler (Edward Binns), o piloto Marv Ellman (Anthony Costello), o mecânico Quentin (James Woods), o padastro de Delly, Tom Iverson (John Crawford) e sua aparente namorada, Paula (Jennifer Warren).

Na primeira camada, Um Lance no Escuro funciona como um eficiente thriller de mistério, na linha dos filme-noirs rodados ou ambientados nos anos 1940. A câmera não é onipresente (regra elementar do gênero). A ela não é dado o poder de ver nada além daquilo que é visto pelo detetive, o que faz com o público nunca esteja à sua frente durante as investigações. Além disso, há a femme-fatale de plantão (aliás, mais de uma). E, como não poderia deixar de ser, a trama é naturalmente complexa (a maioria dos espectadores sentirá necessidade de ver o filme uma segunda ou terceira vez), com referências à pedofilia e incesto [nesse aspecto, o filme de Penn se aproxima de Chinatown (Idem, 1974)], e cuja revelação final traz à tona (no caso, literalmente) algo bem maior do que a premissa inicial.

Mas é nas camadas mais profundas que Um Lance no Escuro mostra toda sua riqueza. Ao contrário dos filmes do gênero, que costumam ser por demais dependentes da trama, a obra de Arthur Penn pode ser vista como um estudo de seu personagem central. Harry Moseby pretende ser um detetive à moda antiga, ao estilo de Sam Spade (de O Falcão Maltês, de Dashiel Hammett) e JJ Gites (outra semelhança com Chinatown). Mas, na verdade, ele é a antítese destas figuras. Moseby não tem a menor consciência do que está passando à sua frente. As pistas vão se acumulando, e ele não as vê. Ele é jogado de um lado para outro, mais pelas circunstâncias da investigação do que por suas deduções lógicas. A certa altura, um personagem praticamente confessa a prática de um crime, mas Moseby não o escuta, tão absorto em suas próprias conclusões sobre os eventos que vem presenciando. “Você está fazendo as perguntas erradas!”, lhe diz outra personagem. Ao final, resignado pelas evidências, o próprio Moseby admite não foi ele que resolveu o mistério central, mas sim a solução que caiu em seu colo.

Essa cegueira e ineficiência de Moseby se estende para sua vida particular. Numa noite, voltando para a casa após a coleta das primeiras pistas sobre o desaparecimento de Delly, Moseby descobre que sua esposa tem um amante. Seu nome é Marty Heller (Harris Yulin). Aparentemente o affair entre os dois vinha de longa data – talvez fosse até do conhecimento de terceiros, certamente era de Charles (Bem Archibek), o funcionário gay que trabalha na loja de antiguidades de Ellen. Mas Moseby não desconfiava de nada. Ao flagrar os dois saindo do cinema (“Eu vi um filme do Rohmer uma vez. Era algo como um quadro seco”), ele não se aproxima para pedir explicações. Assim como fizera no passado, quando encontrara seu pai em uma praça, Moseby apenas se afasta. Mais tarde, ao confrontar Marty na sua casa, este o incentiva a adotar uma postura mais violenta, ao estilo de Sam Spade. Mais uma vez, ele recua e nada faz. Como detetive particular, Moseby é um excelente jogador de futebol.

A chave para entender a personalidade de Moseby é o xadrez (que encontra ressonância, inclusive, na sutileza do título original do filme). Ao longo da narrativa, Penn fará três referências ao jogo, em cada qual cumprindo uma função dramática diferente. Na primeira, Moseby entra na loja de antiguidades da esposa, que possui um desses tabuleiros decorativos em cima de um móvel. As peças estão postas nas suas respectivas marcas iniciais. A partida está pronta para começar. Moseby pega uma destas peças e a arremessa em direção a Charles que, mesmo apavorado pela ousadia do marido da sua patroa, consegue agarrar a cara relíquia. Impressionado com a destreza do funcionário e do alto da sua experiência de ex-atleta profissional, Moseby exclama: “boa pegada!”. O jogo começou.

Mais tarde, Moseby é visto dentro do seu carro. Ele está em frente à casa de Marty. No banco do passageiro, vemos um mini-tabuleiro. As peças estão esparramadas. O jogo está em curso. Moseby se mostra indeciso quanto ao próximo movimento. Enquanto decide a melhor estratégia, ele lança olhares para o espelho retrovisor, por onde tem a visão da chegada do amante da sua esposa. Moseby demora tanto a agir, que seu interlocutor finalmente aparece e o xadrez é deixado de lado. Essa indefinição de Moseby no jogo reflete o seu estado de espirito em relação ao adultério da sua mulher. Ironia maior: o detetive que vive das infidelidades alheias, simplesmente não sabe o que fazer (qual peça deve movimentar) quando ele é a vitima. A situação se torna ainda pior quando ele descobre que a esposa revelou ao amante detalhes sobre o seu relacionamento com o pai. Em certo sentido, Moseby se sente mais traído por ter sua intimidade desnudada do que por saber que sua mulher foi para a cama com um estranho.

A última referência ao xadrez é a mais explícita. Num certo momento, ele repete os movimentos de uma partida clássica ocorrida muito anos antes, que levariam as peças pretas à vitória. No entanto, ficamos sabendo por Moseby que o jogador não vislumbrou a possibilidade do xeque-mate, optou por outra estratégia, e perdeu a disputa. “Ele deve ter se arrependido por todos os dias da sua vida. Eu, ao menos, sei que me arrependeria. Pra dizer a verdade, eu me arrependo, mesmo nem tendo nascido naquela época”. É óbvio que a cena resume a própria vida de Harry Moseby. Assim como o enxadrista derrotado, Moseby não percebe o que está se passando à sua frente. Ele não percebe que as mortes que vão se sucedendo pelo caminho não tem qualquer relação com o desparecimento de Delly; que algumas delas podem realmente ter acontecido por um mero acaso; e que provavelmente está sendo enganado pelas pessoas envolvidas na investigação. Do mesmo modo, ele também não percebe que sua ausência em casa, possivelmente provocada por seguidas noites em claro, dentro de um carro, à espera do melhor momento para fotografar o amante de uma mulher, já corroeu inteiramente seu casamento. Só que, para Moseby, a chance do xeque-mate já passou. Mesmo que vença o jogo, ele se considerará um derrotado. Seu arrependimento por não ter compreendido o real significado do mundo ao seu redor, o perseguirá pelo resto da vida. Seja no ramo dos dubles ou em outra investigação particular, Moseby estará para sempre condenado a vagar em círculos, sem rumo definido, com aquela imagem turva que emerge do fundo do mar voltando para assombrá-lo.

O filme contém ainda uma última camada, que transcende à trama de mistério que serve de fio condutor da história e ao personagem de Moseby. Nas entrelinhas, Um Lance no Escuro é um retrato do clima da América naquela primeira metade dos anos 1970. Essa leitura decorre não apenas da própria filmografia de Arthur Penn, como também dos diálogos do roteiro de Alan Sharp. A certa altura, Paula pergunta a Moseby: “Onde você estava quando Kennedy foi assassinado?”. Ele retruca: “Qual Kennedy?”. A resposta de Paula é reveladora: “Qualquer um”. Embora lançado em 1975, Um Lance no Escuro foi filmado em 1973. JFK havia sido morto em praça pública há meros dez anos. Seu irmão, tivera o mesmo fim há menos de cinco. Martin Luther King também fora assassinado naqueles dias. Como se não bastassem tantas feridas abertas, a Guerra do Vietnã estava em seu auge, e o escândalo Watergate, prestes a derrubar um Presidente. Como uma criança que perde os pais na multidão, o povo americano se sentia completamente desamparado, sem ninguém para dar as mãos. Assim como outras obras lançadas na mesma época, como A Trama (The Parallax View, 1974) e A Conversação (The Conversation, 1974) – Harry Moseby poderia muito bem ser irmão gêmeo de Harry Caul, personagem vivido pelo mesmo Hackmam no filme de Coppola –, Um Lance no Escuro também captou o espírito de uma época, só que de uma forma bem mais subliminar.  Mais do que a investigação sobre uma menina desaparecida, o que atraiu Penn ao projeto (talvez até reforçado por ele) foi a desesperança e a falta de confiança dos personagens. Neste sentido, Moseby poderia muito bem representar o americano médio, aquele que por anos a fio sempre fez as perguntas erradas e que, no final da jornada, também é condenado a vagar em círculos, perdido num enorme labirinto que ultrapassa sua capacidade de compreensão.

Os anos 1970 realmente se distinguem de qualquer outra época da cinematografia americana. Era uma época de excesso, regada a muita droga, sexo e rock’n’roll, mas que, por outro lado, apostava na ousadia, no inusitado, no novo, na aposta, na inventividade e até mesmo no erro. Talvez isso explique a impressionante quantidade de bons filmes lançados em um período tão curto de tempo, muitos deles considerados clássicos absolutos e indiscutíveis nos dias de hoje. Dito isto, é hora de se fazer justiça e achar um espaço nesta lista para Um Lance no Escuro, cuja revisão revelou riquezas, nuances, sutilezas e camadas raras de se ver em uma obra deste gênero. Um Lance no Escuro: desde já (ou melhor, desde sempre), um dos grandes filmes da década de 1970. 

Comentários (6)

Régis Trigo | quinta-feira, 12 de Setembro de 2013 - 11:08

Bota sua nota aí, Daniel.

LaPelecoteco Guimarães | quinta-feira, 12 de Setembro de 2013 - 11:30

Nossa, como não sabia da existência disso, tava querendo ver algo épico com o Hackman nessa época e me vem logo uma dica do Régis 😏

LaPelecoteco Guimarães | segunda-feira, 23 de Setembro de 2013 - 21:17

Já vi, é bão, acho que vou precisar ver mais umas 3 vezes pra captar tudo que o Régis disse 😏

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