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Críticas

Cineplayers

Entre o teatral e o cinematográfico.

6,0
Grande parte do desafio em fazer cinema não está apenas no desafio da filmagem, mas também no da adaptação de uma visão própria daquele material, independente de sua origem primária. E levar peças de teatro para o cinema é um desafio que se fixa desde os primórdios da sétima arte (e que se originou do próprio teatro), por onde já se aventuraram William Friedkin (Os Rapazes da Banda, Possuídos), Roman Polanski (Deus da Carnificina), Sidney Lumet (12 Homens e uma Sentença), Mike Nichols (Quem Tem Medo de Virgínia Wolf, Closer - Perto Demais), entre outros.

Escrita para os palcos nos anos 80 por August Wilson e roteirizada pelo próprio para o cinema antes de sua morte em 2005, Um Limite Entre Nós é, verdadeiramente, a definição daquilo que podemos chamar de teatro filmado, para o bem ou para o mal. Protagonizado por Denzel Washington e Viola Davis nos palcos (e premiadíssimos por seus trabalhos) e reprisando os dois atores em seus respectivos papéis nas telas, a obra também dirigida e produzida por Washington é uma experiência inflexível quanto a levar as palavras de Wilson para o cinema, uma vez dada a escolha de Denzel em dar vida não a uma adaptação, mas uma transcrição literal da peça dos palcos para a frente das câmeras. Se Um Limite Entre Nós comprova sua força de vontade a partir deste ponto, é na execução filmíca que o filme irá encontrar seus principais empecilhos.

Há, é claro, toda uma força inegável no texto de Wilson desde a sua concepção, onde conhecemos Troy (Washington), um catador de lixo na América dos anos 50 que, amargurado pelas oportunidades que o racismo lhe tirou da vida (ele perdeu a chance de se tornar um jogador profissional de baseball na juventude) e pelas oportunidades rasas que a hierarquia racial lhe dá (as primeiras falas são sobre como os negros são sempre relegados a catar o lixo, enquanto que os brancos sempre dirigem os caminhões), vive num constante sentimento de existência amargurada, tendo trabalhado durante muito tempo para sustentar a esposa Rose (Davis) e o filho Cory (Jovan Adepo) e o irmão sequelado pela guerra Lyons (Russell Hornsby). À partir desta junção familiar é que Um Limite Entre Nós vai costurando seu retrato sobre a realidade negra na América (com direito a própria bandeira do país balançando ao fundo) enquanto desenlaça as relações de Troy com as figuras ao seu redor.

Pois sim, Um Limite Entre Nós faz questão de centralizar a figura do homem, pai de família, trabalhador, porém alcoólico, ressentido e orgulhoso, para que suas mensagens sejam desenhadas. É de Troy as cercas, sugeridas pelo título original, que estão sendo construídas ao redor da sua casa, mas que nunca são finalizadas, numa alusão clara a sua constante indignação ao sistema e aos costumes do próprio que, inicialmente se firmando como uma figura carismática, vai se desconstruindo rapidamente em um homem que apesar de seus esforços em manter a família unida, falha miservalmente em manter a paz e um tratamento justo à sua esposa e filho. Nisto, Um Limite Entre Nós também deseja ser tanto sobre a desconstituição familiar (com a esposa), quanto sobre um conflito de gerações (com o filho), num belo e difícil processo de humanização do personagem que, sim, se torna odiável e intragável em certo ponto, mas o qual jamais conseguimos deixar de compreender devido ao pouco que a vida lhe deu e muito lhe tirou. E é louvável como Denzel, num domínio monstruoso de presença e imposição corporal, carregando a maior porcentagem da carga dramática do filme, e se não há como termos empatia pelo que o personagem é, nos emocionamos pelo que aquela figura representa.

E aqui falemos de Viola, e não apenas isso, falemos sobre sua posição no contexto da obra. Rose é constantemente posta como o para-raio das atitudes e palavras de Troy, é dela a tarefa de equilibrar quando é necessário ter equilíbrio, é dela a tarefa de responder emocionalmente as investidas duras e implacáveis de Troy, é dela a tarefa de ser carinhosa, racional, amável e acolhedora. E com supostamente tanto a fazer, é de se estranhar a desvalorização da qual Viola é vítima ao longo de todos os extensos diálogos e longas sequências ambientadas interna e externamente. Sentimos a presença de Viola ali e o quanto sua personagem é necessária, mas Rose pouco move o filme, mesmo com sua função em cena. Rose é indispensável, e ainda assim sentimos que não há o espaço devido para a mesma, seja nos extensos monólogos ou nas respostas às ações de Troy. No que é o momento mais explosivo do longa, vemos Viola dizendo a que veio e revelando do que é capaz quando o material finalmente lhe é dado, mas é pouco tanto para uma atriz como Viola como para a existência indispensável da personagem. Rose ganha mais espaço no terço final da obra, mas até lá, já é tarde demais.

E talvez numa extrema negligência com o que é fazer cinema (claro, isto é absolutamente relativo), Denzel pesa a mão ao pouco contribuir para a narrativa do filme enquanto objeto cinematográfico. Há quem diga que a filmagem de Um Limite entre Nós remete a um cinema clássico e econômico, mas se for, faz alusão ao que há de mais cansativo dentro deste cinema classicista. Se o texto de August Wilson deve funcionar nos palcos, nas mãos de Washington ele se torna um artifício mal controlado para os atores, que em verborragia constante, não deixa a obra respirar um minuto sequer, pesa a mão na pilha de sentimentos promovida pelo filme e é pouco eficiente no senso de movimentação que uma adaptação como essa requer. Afora as transições sutis entre um tempo e outro (e o desfecho vergonhosamente melodramático), quase não há um dedo de direção em Um Limite Entre Nós, a missão fica toda para o elenco, e nisso o filme se desequilibra e pouco evolui ou constrói algo a partir de tanto falatório. Quer ser um tour de fource, mas o resultado é apenas o cansaço.

Assim, Um Limite Entre Nós serve perfeitamente como ponte para que o elenco, ou melhor, para que Washington se banhe em sua facilidade para dominar um texto que já é de seu conhecimento, e em menor escala, para que Viola Davis brilhe nos poucos instantes em que algo lhe é dado. Como adaptação, o filme fica no limiar entre o teatro meramente filmado e uma adaptação que pouco quer fazer em relação a ser cinema. Como originário do teatro, o cinema pode bem mais.

Comentários (1)

Prêmio BRAZINTERMA | segunda-feira, 30 de Outubro de 2017 - 15:40

Muita gente ficava dizendo que Denzel merecia ganhar Oscar por este filme, mesmo ganhado 2 estatuetas interpretando pelo mesmo papel.

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