Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Redenção e Liberdade

9,0

Do que poderia ser a pior das negações da vida, a prisão é forma de punição encontrada pelo Estado para àqueles que transgridem a lei, a moral e a ética, estas que historicamente originam-se de conceitos civilizacionais que encontram fundamentos na tradição de culturas religiosas, curiosamente como a concepção da ideia de “redenção”, esta que dá o título original a este filme. Algo que muitos filósofos modernos consideram um equívoco, tal como a muito influente romancista e filósofa Ayn Rand, que defende que o código do bem e do mal do homem, com as conotações emocionais de elevação, enaltecimento, nobreza, reverência, grandiosidade pertencem somente ao universo dos valores do homem, os quais, segunda a autora citada, a religião indevidamente se apropriou.

Fato é que, a grosso modo, talvez nada seja pior para vida de um indivíduo do que a condenação à prisão. Nem mesmo a doença, nem a miséria, nem a solidão, nem mesmo a morte. Talvez nada disso se compare a uma experiência que é, por definição, a exclusão da possibilidade de viver, a imposição  de algo que  anula por completo qualquer chance de liberdade, livre arbítrio ou individualidade.

Um Sonho de Liberdade  (The Shawshank Redemption, 1994) é um filme imensamente popular e que sobreviveu com louvor aos tempos. É um clássico do cinema. Adorado, televisionado, revisto, presente nos tops de cinéfilos, bem avaliado por público e crítica. No entanto, eis um filme de prisão -  o mais horrendo e temível destino de todo cidadão. No enredo não há amor carnal, não há paisagens bonitas, não há espetáculo de efeitos especiais, e seu diretor, Frank Darabont, diz que seu estilo de direção é o invisível, ou seja, prioriza por uma narração em padrão clássico-narrativo, para que seu próprio estilo não ofusque nem se sobreponha a mensagem de suas obras. Ainda assim, o que faz deste um filme tão popular?

Curioso pensar como dramas que se passam na prisão, como o claustrofóbico O Expresso da Meia-Noite (Midnight Express, 1978), são retratos invariavelmente angustiados, sofríveis, mas que acabam por despertar esse fascínio em grande escala apesar de todo o sadismo compulsório. Como inverso direto da liberdade, o cárcere compõe o outro lado de algo que, no final das contas, é o da mesma moeda, que é a existência. Nesses filmes é importante notar como, dentro da prisão, se estabelece uma nova organização social, e isso é evidenciado em narrativas que têm seu pontapé incial nos princípios de sobrevivência e impulsos fundamentais da mente humana defendidos por Freud, que são o da violência e o sexual – ou seja, sempre que alguém vai preso, de cara ou apanha ou é estuprado. Volta-se a estaca à zero, a era das cavernas.

Com o passar do tempo, novas facetas de matizes da organização social vão aparecendo e se revelando no comportamento dos presidiários, em uma gama que nem caberia aqui: trocas monetárias, jogos de interesse,  divisão de tarefas, trabalho ordenado, escala hierárquica etc. Na medida em que a própria detenção mostra o seu modo de civilização, vem também todo um arsenal de sentimentos que se seguem aos primitivos, que vão da melancolia à loucura; do nojo à dignidade; da culpa à carência; da rebeldia à coragem.

Freud assegurava que, reduzido à privação extrema, o ser humano perderia sua casca de espiritualidade e poria à mostra sua verdadeira natureza, comportando-se como um bicho. E é em torno dessa possibilidade que a narrativa do filme é construída, de modo que, apesar de todas as formas opressoras as quais os personagens tem de passar, como formas de controle político, religioso, econômico (tal como demonstrou Anthony Burgess e Stanley Kubrick em Laranja Mecânica [A Clockwork Orange, 1971], ou Ken Kesey e Milos Forman em Um Estranho no Ninho [One Flew Over the Cuckoo's Nest, 1975]), há um fio de esperança, uma elemento de humanidade que pode salvar e redimir a sociedade e o indivíduo, nesta história escrita por Stephen King, um autor erroneamente conhecido por ser alguém que faz simplesmente histórias de horror – mas sim de alguém que busca alguma humanidade em meio a barbárie.

Um filme sobre a liberdade? Mas afinal, o que é o ideal de liberdade? Essa possibilidade de fato existe na sociedade?

O tema é de imensa complexidade filosófica, e nem caberia a uma crítica de um filme específico. Mas convém lembrar aqui que um dos grandes intelectuais do século passado, Isaiah Berlin, filósofo político da Universidade de Oxford, acreditava que existiam duas possibilidades. Chegou a esta conclusão em um artigo que foi o grande alicerce ideológico da Guerra Fria, chamado “Two Concepts of Liberty”, após refletir sobre o fato de que, nações como a antiga União Soviética, que em nome da liberdade e de uma sociedade mais justa e igualitária acabou sendo um palco de massacres, um regime assassino e tirano. Disso, surgiram conceitos como Liberdade Positiva e a Liberdade Negativa. Em linhas gerais, a Liberdade Positiva nasceu da crença de líderes revolucionários e é  guiada pela visão de que a liberdade é para algo, por algum ideal para a sociedade – tal como fomentou a Revolução Francesa e revoluções socialistas. A liberdade para fazer ou se tornar algo novo, da qual um mundo melhor resultará – nem que isso implique coação das massas. Berlin dizia que este tipo de liberdade sempre levaria a sociedade ao caos e falharia, pois é guiada pela crença falsa de que havia uma única resposta para todos os males – portanto, os fins acabam por justificar os meios, e aí instaura-se o horror. Liberdade negativa não tem tal visão. Não é por coisa alguma. No seu centro, não tem qualquer propósito. É entendida como a não-interferência do poder do Estado sobre as ações individuais: o indivíduo é o mais livre quanto mais o Estado deixar de regular a sua vida. A falta de restrições é, portanto, diretamente proporcional ao exercício da liberdade negativa. É a liberdade de todos os indivíduos de fazerem o que quiserem, e nada mais. Deviam haver governos e leis para garantir a liberdade. Uma sociedade sem ideais, nada que vá além dos desejos individuais e a possibilidade de realizá-los – o que é a base ideológica do liberalismo e da civilização de consumo. Uma sociedade composta por milhões de indivíduos egoístas, aos moldes do que a filósofa russa Ayn Rand, que adotou os Estados Unidos como pátria e lá se tornou sua romancista mais influente, em romances como The Fountainhead (que foi lançado recentemente no Brasil como “A Nascente”, além de na época ter tido sua versão para o cinema por King Vidor)  e Atlas Shrugged (A Revolta de Atlas), este último em nível de influência nos EUA atrás somente da Bíblia.

Na essência destes dois conceitos de liberdade, está implícito um embate entre liberalismo e socialismo, o mote da Guerra Fria, a grande questão do século XX. É importante perceber como Um Sonho de Liberdade é um filme, essencialmente, sobre o debate em torno da organização social ao longo do século, e uma visão pessimista sobre todo e qualquer plano econômico e político assegurar uma forma legítima da liberdade – a polaridade entre liberdade positiva e negativa, entre União Soviética e Estados Unidos. A entrada de Andy Dufresne (Tim Robbins) na prisão é justamente na época que se sucede ao fim da Segunda Guerra Mundial. A partir daí, ele, um bancário e economista, se vê preso em seu próprio sistema, sendo explorado pelos controladores da prisão, pela figura de um Estado absolutamente corrupto. É interessante como a entrada do jovem roqueiro e delinquente juvenil, já décadas depois, promove um novo frescor para aquele ambiente social, e traz consigo uma esperança de liberdade para Dufresne, que é imediatamente sabotada pela força do Estado e pelo poder econômico – ele é impedido de fugir, tampouco ajudar o protagonista a escapar.

Mas há alguma possibilidade real e viável de liberdade? Sem dúvida, e é esta que faz deste filme tão querido e popular. É a própria humanidade, o senso de dever, a crença na viabilidade de uma redenção.

Há um livro sobre isso, o clássico Man’s Searching for Meaning, baseado num relato pessoal real. Viktor Frankl, médico judeu austríaco preso durante a Segunda Guerra, entrou no campo de concentração determinado a conservar a integridade da sua alma, e não deixar que o espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo. Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação. O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais  pérfido que Hitler – o sentimento de viver uma futilidade absurda.

Esse sonho de liberdade, essa forma de redenção, ela é própria de toda jornada mitológica, de todo arquétipo de herói, algo em que estudiosos como Joseph Campbell passaram a vida a comprovar, em livros clássicos como "O Herói de Mil Faces". Foi o senso de humanidade e o sentimento elevado de pura amizade e compaixão que salvaram Dufresne e Red Redding (Morgan Freeman). Serenidade. Resignação. A crença em um retorno, em uma vida que se completa fora de suas limitações físicas.

O pôster de Rita Hayworth na parede, e o vasto túnel que se abre através de sua imagem, e esse túnel é evidentemente de caráter altamente simbólico (uma volta ao ventre, uma imersão em seu estado psíquico interior), remonta algo de demasiadamente humano entre os homens: a primeira escultura que se tem notícia na humanidade, Vénus de Willendorf, feita há mais de 24 mil anos, era justamente a imagem de uma mulher com formas voluptuosas, avantajadas, vistosas, justamente para dar conforto ao nômade, um pequeno amuleto que o fizesse sentir-se seguro e amparado ao atravessar longos períodos de peregrinação e estiagem.

Nenhum homem inventa o sentido da vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo próprio sentido da vida. Este demarca e fixa, num ponto determinado no tempo e no espaço, o centro da sua realidade pessoal, mas só visível desde dentro. Talvez por isso, Um Sonho de Liberdade é um filme que diz tanto as pessoas do que aparentemente pode se ter consciência.

Comentários (8)

Angelão | terça-feira, 31 de Dezembro de 2013 - 10:43

O filme é maravilhoso mas essa crítica é uma das mais belas do site. Esse pra mim é o melhor tipo de crítica, aquela que se vale de experiências de outras artes e da filosofia para compreender a raiz da obra, seu cerne, aquilo que nos toca de forma tão profunda que faz o filme imergir em nossos sentimentos de forma tão profunda. Parabéns Mion!

Paula Lucatelli | terça-feira, 31 de Dezembro de 2013 - 14:48

Concordo \"Angelão\"! Uma belíssima crítica que apenas realça a magnitude desta obra-prima do cinema moderno. A narração em off de Morgan Freeman é maravilhosa (assim como a de Menina de Ouro)! Filme para ser revisto constantemente!

Yuri Mariano | sexta-feira, 03 de Janeiro de 2014 - 11:15

Bela crítica (um pouco cansativa vale ressaltar), mas estava à altura do filme. Que considero um dos melhores filmes de todos os tempos.
Como o colega Robin Kazan comentou, se o filme tivesse concorrido ao Oscar em outro ano, teria ganho todos.

Faça login para comentar.