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Críticas

Cineplayers

A megera indomada.

7,0
Na abertura de Um Sonho Sem Limites (To Die For, 1995), a câmera de Gus Van Sant passeia por inúmeros recortes de jornal, matérias e manchetes sobre o possível envolvimento de uma popular garota do tempo no assassinato de seu próprio marido. Suzanne Stone (Nicole Kidman) está sempre sorrindo, acenando, aproveitando os flashes, se promovendo por meio da atenção gratuita que a colocou, por alguns instantes, no topo que sempre almejou chegar. A conclusão é clara e dada logo de cara: não existe publicidade ruim. A trilha e os recursos narrativos usados pelo diretor parecem ignorar a seriedade daquelas acusações e estabelecem um clima de humor e irreverência, anunciando-se uma espécie falso documentário, no qual diversos personagens compartilham suas perspectivas e experiências relacionadas com Suzanne e sua jornada de sedução, poder e morte. 

Um Sonho Sem Limites pode ser considerado, num primeiro momento, como um incomum estudo de personagem. A narrativa sobrevive quase que unicamente de depoimentos variados, incluindo os da própria protagonista, de modo que o cruzamento de informações jamais consegue estabelecer um veredicto oficial e final sobre a personagem em questão. Suzanne é um verdadeiro mistério, sobrevive somente de sua fama, de seu histórico, de sua imagem perante as pessoas pelas quais passou para chegar onde queria. Ao mesmo tempo em que Van Sant tanto procura alcançá-la, seu formato fragmentado e documental jamais lhe permite acesso à verdadeira intimidade e natureza dessa mulher inescrupulosa. Nicole Kidman, no auge de sua beleza e na ascensão de sua carreira, capta em detalhes todas essas camadas de Suzanne, oferecendo uma performance ora charmosa, engraçada e vulnerável, ora cruel, calculista e perigosa.

Em um segundo momento, conforme novos personagens são inseridos, como o trio de adolescentes manipulado por Suzanne para a execução de seu plano de assassinato, Van Sant amplia sua perspectiva e potencializa o valor de sua narrativa ao incluir na mesa os desajustes, dramas e sentimentos de uma geração tão refém de seus ídolos de TV, tão obcecada por aparências, tão insegura de si. O diretor dava continuidade aos temas que tanto lhe interessaram em trabalhos anteriores, como Drugstore Cowboy (idem, 1989) e Garotos de Programa (My Own Private Idaho, 1991), e antecipava em forma e conteúdo o que viria a fazer em sua futura obra-prima, Elefante (Elephant, 2003). Em todos esses filmes, ele procurou de alguma forma passear por histórias corriqueiras que terminam em situações comprometedoras de crime, decadência e morte. Vítimas de uma mídia que banaliza a violência e o sexo e frutos de uma geração consumista, egoísta e separatista, os jovens nos filmes de Van Sant ou tendem a se deixar engolir pelos desejos ou simplesmente enlouquecem com a pressão e se tornam perigosos. 

O interessante é que, seja numa comédia de humor negro como Um Sonho Sem Limites, seja num drama desesperador como Elefante, os fragmentos captados por Van Sant jamais permitem uma visão total e conclusiva sobre a juventude. Sua intenção é sempre questionar, satirizar, desmoralizar e, em algum nível, também compreender e em parte perdoar. Inclusive, no DVD lançado pela Obras-Primas do cinema recentemente, há um extra com uma entrevista do diretor divagando um pouco sobre o que o levou a se interessar por essa história. Suzanne permanece um mistério mesmo após muitas revelações e reviravoltas, mas o que sobra após os créditos finais é um inexplicável sentimento de empatia por essa psicopata que, no fundo, só fez aquilo que julgava necessário para alcançar aquele sonho quase impossível que a grande maioria jamais sequer se permite sonhar.  

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