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Críticas

Cineplayers

De frente para o abismo.

9,0

Jia Zhangke faz um cinema grandioso e complexo, à altura da imensidão do país que filma. Seria inútil o esforço de dar conta de seu novo longa-metragem em um texto curto e apressado, baseado em impressões imediatas. Assim, abordo aqui apenas superficialmente alguns aspectos mais gerais. A Touch of Sin (Tian Zhu Ding, 2013) é composto de quatro episódios, com quatro protagonistas de diferentes províncias da China, cujas histórias estão ligadas por atos de violência e morte. Zhangke preocupa-se com as transformações da sociedade chinesa contemporânea – a crescente desigualdade, a exploração do trabalho e suas consequências nas relações sociais. Em um contexto opressivo e desesperançoso, a violência surge como a forma mais rápida e eficiente de resguardar a dignidade humana.

O cineasta encontrou nas artes marciais e nas óperas chinesas inspiração para desenvolver sua narrativa. O próprio título evoca o filme de ação A Touch of Zen (Xia Nu, 1971), de King Hu – considerado um dos mais importantes e aclamados realizadores chineses. O resultado é deslumbrante, até agora um dos pontos altos do Festival de Cannes. A primorosa fotografia de Yu Lik-Wai – que trabalha com o diretor desde seu primeiro filme, Xiao Wu (1997) – em muito contribui para isso.

O roteiro partiu de histórias reais de crimes cometidos na China atual e amplamente noticiados no país. O cineasta estudou cada um deles, entrevistando pessoas envolvidas e visitando os espaços em que ocorreram. Ao contrário de muitos realizadores, que buscam na abordagem naturalista uma maior proximidade com a realidade, Zhangke utiliza-se dos artifícios da ficção para produzir efeitos de verdade. Assim, as histórias reais são apenas o ponto de partida; mais que mesclá-las a elementos ficcionais, importa a forma como são conduzidas dentro de uma diegese muito própria, a força que ganham ao tornarem-se verdadeiras fábulas da China contemporânea.

Começamos atravessando uma estrada: o filme nos convida a percorrer regiões e histórias que evocam a diversidade de paisagens, dialetos, realidades e dramas que convivem nesta gigantesca nação. A proposta é de nos oferecer um panorama social. Não por acaso o roteiro promove o encontro dos personagens e se fecha num ciclo, quando Xiao Yu, protagonista do terceiro episódio, volta em cena, chegando à cidade onde se desenrola a primeira história. O movimento circular é também performado pela câmera, quando contorna os personagens. O travelling no barco que leva Zhou San (protagonista da segunda história) de volta a sua cidade natal – imagens que muito se assemelham às de Em Busca da Vida (Sanxia Haoren, 2006) – lembra pinturas renascentistas (como as de Pieter Bruegel) que num só quadro representavam uma enorme multiplicidade de narrativas internas, de acontecimentos simultâneos, de pequenas ações que convidam o olhar a passear pela superfície da imagem. De fato, Zhangke diz compartilhar do impulso estético de pintores clássicos da China, que buscavam criar panoramas visuais do país.

Uma imagem que se mostra logo no início de A Touch of Sin me pareceu iluminar o conjunto de quatro histórias. Na sinuosa estrada que Zhou San atravessa de moto, avistamos uma ponte quebrada. Ela não leva a lugar nenhum, exceto ao abismo. Sua enorme estrutura de concreto é simplesmente interrompida, não sabemos se por um acidente, uma catástrofe natural, ou porque sua construção foi abandonada pela metade. A interrupção, a ruptura, o desvio apresentam-se para cada um dos quarto personagens, pressionando-os a enfrentar situações extremas, a lidar com seus próprios limites. É preciso desvendar novos caminhos quando aquele à nossa frente desmorona. Cedo compreendemos que a resposta possível será sempre a violência mortífera: após um breve momento de suspense – em que ficamos em dúvida de como o personagem sairá da situação –, Zhou San não hesita em assassinar os três jovens que tentaram armar-lhe uma emboscada.

Visto no 66º Festival de Cannes

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