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Críticas

Cineplayers

Cinema da frontalidade.

8,0

This is where the truth begins
Where teardrops glance the sallow skin
You lose your will
And I can lend you mine

O cinema de Philippe Garrel, como boa parte dos autores e herdeiros da nouvelle vague francesa, mantém uma relação fundamental com a pintura - tanto quanto com a música, dois elementos bastante influentes na composição estética do diretor. Em Um Verão Escaldante (Un eté brûlant, 2011), a frontalidade dos enquadramentos e o raro uso de campo/contracampo nos remetem mais uma vez a esta relação, e devolvem o espectador à sua posição original enquanto apreciador: observando, com certa distância, as imagens de uma superfície plana ou de um palco, sem que haja intromissão da câmera na ação — ou, neste caso, havendo com muita discrição. Em um circuito comercial cada vez mais dominado pela tecnologia 3D e a tendência de explodir filmes em fragmentos e arremessá-los ao encontro do olhar do público como — falso — efeito de imersão, o filme chega ao Brasil fazendo um contraponto interessante, podendo ser encarado por alguns como frio e impenetrável, mas servindo a tantos outros como um respiro necessário de contemplação.

É na frontalidade distante, de quem pinta quadros bidimensionais e acrescenta a eles os movimentos necessários para a fruição do cinema, que encontra-se a beleza imprimida por Garrel a Um Verão Escaldante. Marcada pelo retorno do diretor à fotografia a cores, a câmera compõe imagens que aproximam-se dos princípios da pintura, enquadrando atores, objetos e cenários sob um mesmo ponto de vista — geralmente também em um mesmo quadro — que sustenta-se durante toda a sequência, como que desenhados sobre uma superfície rígida e com pouca profundidade de campo, da qual a vida evanesce ao abandono do olhar. O resultado não raramente leva a relação entre filme e espectador a um extremo incomum, exigindo que se observe o drama particular dos personagens com um distanciamento incorrigível, semelhante ao contato primário com uma pintura emoldurada e pendurada à parede, sem permitir envolvimento suficiente para que se coloque dentro dos acontecimentos — mas sim, e unicamente, diante deles.

Deste distanciamento do olhar surgem cenas como a dança de Monica Bellucci embalada por Truth Begins, dos ingleses da Dirty Pretty Things, canção à qual pertence o fragmento acima, e cujos versos antecipam o conflito central do filme — o fim do relacionamento entre uma atriz (Angéle) e seu marido (Frédéric), um pintor que tem nela a inspiração para seu trabalho e vida, narrado sob o ponto de vista de um amigo do casal, com quem convivem durante uma temporada de verão na Itália. A dança gera um momento de êxtase na narrativa, num plano-sequência estático que comprime em seu apertado quadro diversos dançarinos girando em torno da atriz que, nos braços de outro homem, é vista com um sorriso jamais presente nas cenas vividas com seu marido. A câmera de Garrel acompanha tudo lateralmente — próximo de onde também via a cena o marido, interpretado por Louis Garrel, filho do diretor —, abandonando a possibilidade de fazer parte da ação, de inserir o espectador à dança, para deixar aos corpos a função de gerar atrito e movimento na imagem, causando um efeito estonteante. 

A alegria e a sensualidade imanentes à dança, porém, são tão instantâneas quanto fugidias. A canção já nos antecipa: É aqui que a verdade começa / Onde as lágrimas caem na pele pálida / Você perderá sua vontade, e eu não poderei te chamar de minha. É a partir deste momento que o conflito emocional entre ambos ganha forma, resultando em outros dois blocos centrados na instabilidade da relação e nas discussões, lamentações, traições e demais consequências fatídicas deste conflito — a principal Garrel já nos antecipa logo na sequência inicial —, retornando a sensações constantemente trabalhadas pelo cinema do diretor — um dos grandes autores do cinema francês ainda vivos. Se não existe nada de novo na abordagem e nos temas, também é verdade que, consciente disso, o filme nos convida a simplesmente observar este recorte da vida de seus personagens com uma pureza afável e rara. Somos poupados dos truques e da comiseração enlatada em troca de um cinema que procura narrar seu drama abrindo espaço para que os agentes se comuniquem diretamente com o espectador — o plano sequência em que o casal, com ambos postados lado a lado, chora a certeza de que o relacionamento chegou mesmo ao fim, é de uma dureza impressionante.

Também pulsa dos filmes de Garrel, e não é diferente neste, uma sensível autorreflexão sobre a própria criação artística — a segunda metade de sua carreira costuma ser apontada como uma grande obra autobiográfica, que versa abertamente sobre o diretor e algumas fases da sua vida, cuja relação com o cinema sempre fora bastante estreita (Garrel dirigiu seu primeiro filme aos 16 anos). A maneira com que a ruína do relacionamento com Angéle atinge Frèdèric e infere decisivamente na sua capacidade de criar, semelhante ao que ocorria com o personagem do mesmo Louis Garrel em A Fronteira da Alvorada (La Frontière de L'aube, 2008), filme anterior do cineasta, compõe uma reflexão sempre instigante da arte como catalisadora dos sentimentos do artista, como imagem do seu estado sentimental e da sua relação com o mundo. “Tenho minha pintura e minha esposa. É nisso que me apoio: amor e arte”, é o que diz Frèderic para o amigo pouco antes do casamento chegar à beira do precipício. Ao lembrar da frase e dos fatos sucedentes, que Frèdèric inicie Um Verão Escaldante morto soa como a opção mais cruel que Garrel poderia trazer para o filme.

Comentários (1)

Álvaro | domingo, 03 de Junho de 2012 - 15:42

Amantes Constante é maravilhoso, tenho que ver este.

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