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Críticas

Cineplayers

A vingança da Cultura Popular.

7,0
Um fato cultural e um desdobramento que, de muito torto grado, chamaríamos de ficcional. O primeiro data de 67 anos atrás, fundo num passado que insiste não ser particular: 1951, Nova York: Bobby Thomson, lendário outfielder e baseman escocês-americano, desfere a lendária tacada que encerra, num melhor de três, a Liga Nacional de Baseball em favor dos Giants contra os Dodgers. Dos supostos lábios do jogador, a melhor coisa que lhe aconteceu, como também, provavelmente, “a melhor que aconteceu ao mundo”. Mas as inflamadas ambições particulares de um momento desfeito em segundos ecoaram no anonimato massivo: “A Tacada Ouvida ao Redor do Mundo (Shot Heard ‘Round the World), como veio a ser conhecido o evento. O home run, a partida inteira ouvida por milhões de americanos, transmissão à Coréia inclusa, e não menos que a primeira televisionada nacionalmente. Um evento fatídico, incalculavelmente massivo, mas cujas imagens, sim, a descarga num imaginário, fariam tremer uma Bíblia desprovida de ápice. Um salvador feito no giro de um quadril e na circunferência de um arremesso.

Em 97, uma das estampas de aço do pós-modernismo literário do império com ares de país, Don DeLillo, faz dois contrastantes amigos se reencontrarem como que ligados por aquele mesmo evento da partida decisiva: em ‘Submundo’, numa espécie de subtrama que acompanha os percursos da bola alavancada por Thomson aos céus, do taco para as mãos de um menino negro, repassada para os furtivos dedos do pai e perdida durante vinte anos de história americana – um digno homem casado em arrastada caça de anos pela bola e um amigo daquela época, a serviço de uma empoeirada loja de artigos, papéis e plaquetas antigas com documentos e lembranças para fãs do esporte, nos anos setenta, vêm, como se unidos naquela miséria conjunta pelo destino, a passar juntos por um momento epifânico. Um “continente” de conversões e imagens.  

O que estes dois homens fracassados e o imundo e desgrenhado Sam (Garfield) possuem em comum e que possa considerar Under The Silver Lake (2018) para além do fracasso comparativo de sua fortuna crítica e da precedente e infeliz fama incrustada das vaias em Cannes? O amigo da loja de DeLillo responde com precisão, no também fatídico, embora a nível particular, encontro: ambas a imagem do protocolo de vida fracassado em busca inexplicável por um artigo, a obsessão quase infantil, e aquela do perdedor emperrado ao redor de manchas de oxidação do passado são “a vingança da cultura popular sobre aqueles que a levam a sério demais”. Mas o preço que o protagonista de David Mitchell paga, se de fato descarrilha busca adentro, não só parece tê-lo sido menos pelos pecados que lhe impõem do que por regência interna das invisibilidades, como é atestado ele mesmo do inalcançável ponto de encontro entre o numérico das massas que somos e a volatilidade dos interesses dos poderosos. Há a aposta, decerto, numa conexão, uma aposta que vai pelo nome de ‘paranoia’ e se estende até as lupas fuçando por signos nas notas de dólares. Histórias que conhecemos com rostos diferentes. Às vezes, afinal, esses pontos se nos desvelam como estouros de vozes maiores, pontilhados, guias que, uma vez costurados, formam mitologias; às vezes as bolas de baseball e garotas que atingem os homens como uma queda são tais vaga-lumes, e a caça devém uma questão de vida ou morte, o mundo uma constelação de aparições; um mapa, aliás, muito semelhante à organização parte-pelo-todo que um filme constrói.

Comparado descaradamente com Vício Inerente (Inherent Vice, 2014) ou Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001) e apelidado em algo em torno de cinco modulações da terminologia noir – das quais “noir maconheiro” é certamente a mais preocupante –, embora as janelas, binóculos, pôsters, fundos de lago e subtramas fantásticas da era do nascimento dos estúdios apontem para uma pulsão Hitchcockiana, não é curioso que a tentativa crítica de farejar ecos estético-narrativos mais sirva para adequar este último Mitchell aquém ou além de certo padrão instituído por gênios que o próprio diretor não só não renega, como parece articular como uma inevitabilidade potente? Todas as histórias já foram contadas, e agarra a bola o melhor farsante da reinvenção? Talvez, contanto que o narrador seja um acumulador apaixonado do passado. É esse salto de diferença e repetição que interessa, e na terra saturada de imagens, no país que faz o ser-visto e o ver a alma, a carne e o osso, delicada passa a ser a vida do que decide trespassar o signo e buscar a invisibilidade perdida no popular – caso a conexão exista? Ora, teríamos de desconsiderar algo que vai pelo nome de ‘Cinema’. 

Chegando, então, à certa base oscilante desse jogo sem fim da visibilidade e dos distanciamentos de estrelas, percebemos pelos sussurros em festas em terraços e pelo farfalhar das páginas quaisquer que há uma figura, um eixo central à ardilosa trama dos lances. Enterradas na marcha do entretenimento, as mulheres, seus mais preciosos alvos, usos e convites, mais uma vez reunidas sob a constelação dos homens, grafadas em demasia na fugaz história visual, aquela que os livros não conseguem acompanhar em volume o que as revistas, anúncios e bonecas “escrevem” em duplos, as mulheres são aquilo que Sam busca constantemente e também aquilo que, seja por morte ou desaparecimento, sempre lhe escapa. Muito como uma câmera, como as que tornaram imortais, palpáveis e divinos os rostos, semelhante ao gesto infantil de descoberta do mundo que torna indiscerníveis tocar e ver, olhar e querer, mulheres parecem desestabilizar homens, coloca-los em posições de devolução e investida que se ilustram por constante recuo e enlace de conquista. E embora esse inquietante poder seja a motricidade narrativa, aqui, ele pouco interessa se não vem acompanhado de sua subsequente e subterrânea perturbação: se é na fuga que a história se dá, se é no escorregar para debaixo que somos acordados para a impossibilidade do agarrar, se, enfim, no desfazer das posses o mundo respira e ganha a chance de se refazer de novo, o que aconteceria se o outro lado pudesse falar da sua escolha? Ou, “pior”, o que aconteceria se percebêssemos que as mulheres fazem, elas, as histórias, e mais: que sua fiadura é tão perspicaz quanto infiltrada?

“Falhe” onde quiser – é inegável que faça cada virada ter a “força” de um bulbo iluminado acima da cabeça suja de Garfield, mas como não tomar a decodificação de um crime pela cultura popular como as literais masturbações imaginativas que o obcecam, o acordo entre o prazer e o ridículo de um sistema fechado? –, Under the Silver Lake reivindica um espelho mitológico para cada patetice replicada por um verdadeiro loser: que (logo) ele seja a descoberta e herói contra o Poder de controle popular personificado numa múmia enrugada ao piano é também a contrapartida patética do golpe final: o crânio do magnata feito papa escarlate por uma sequência de tacadas de uma guitarra até que ela quebre, como num palco de rock duplicado que salva o dia na rapidez de uma refeição do McDonald’s; que ele transe com todas as garotas e seja o modelo icônico e límpido de um desespero adolescente envelhecendo é a afirmativa categórica destas mesmas, que não mais transarão com ele: “tem algo fedendo muito, e acho que é você”. Mas ninguém melhor que a sua garota dos sonhos, a loura icônica feita next door, para desmontá-lo às lágrimas.

Porque é esta a mais perversa vingança da Cultura Popular – os lábios em que ela subsiste riem com esta afirmação? –: ironicamente através de uma tela transmitida, resguardada na tumba que é canal do pós-vida que escolheu com o “papai” do negócio imobiliário, a questão não é se a sua decisão de vida foi estúpida, se aquela pobre loirinha estúpida (como ela é feita para ser vista, mas como não precisa ser, e temos alguns realizadores a agradecer por isso) chegou mesmo a acreditar no tão absurdamente inconcebível guru e as promessas de uma eternidade de prazer. O que o espelho faz repousar no ar é intrigante, é o paradoxo vivo que é perguntar, posto que ela devolve, sobre a vida-decisão dele: “é tão diferente assim do que você está fazendo aí?”. Das masturbações a Playboys, das cifras a lotes subterrâneos mais egípcios que Paul Thomas Anderson, Lynch ou Hitchcocks queiram fazer ver, são todos lances no escuro; nós, somos apostas cegas e enfeitadas indo a um lugar escuro? David Mitchell também parece vir oferecendo, junto às perguntas, sagazes respostas em mitológicas vestes: felizmente, temos as catacumbas, os caçadores, as mulheres, as paixões, todas que cintilam debaixo do espelho do lago cinzento da cultura popular.

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