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Críticas

Cineplayers

Os sons da reflexão.

9,0
O som invade o espaço que comporta a obra. Esse som vai penetrando em cada caixa de som, em cada ambiente, em cada espectador, para provocar e pedir aderência à sua proposta, de investigá-lo e aos poucos se permitir ser penetrado por ele. Todos somos matéria, menos o som que protagoniza Vaga Carne, adaptação cinematográfica da obra teatral de Grace Passô pela mesma, co-dirigida por Ricardo Alves Jr. Criada em tempo recorde (menos de dois meses) para um projeto tão arriscado e desafiador, impressiona os resultados cênicos conseguidos pelos diretores, o que demonstra a intimidade com o material e o domínio para com as ferramentas fundamentais do objeto, som e espaço. Ao adquirir confluência tão natural, o filme se prova independente mesmo que tudo apontasse o contrário.

A partir desse objeto sem corpo (o som/voz), o filme propõe um debate que no atual veículo amplia de proposta. A esfera 'cinema' comporta não apenas uma camada nova na realização como também encampa exclusivamente um olhar para esse dado, também ele se alimentando dos temas já apresentados anteriormente nos palcos. Vai desde a exploração da mulher até uma reflexão muito profunda sobre a utilidade das coisas, sejam elas sentimentos, pessoas ou figuras inanimadas. Essa voz que vaga a invadir objetos e seres humanos é o responsável por tais reflexões, que passam por questões identitárias, de gênero, de inadequação e de encontrar um propósito pra si no mundo.

O filme é um média metragem e na própria concepção inicial não tinha duração estendido. No exíguo tempo de 45 minutos, Grace consegue passar não apenas sua mensagem, como investigar uma nova vertente de trabalho, agora como cineasta, conseguindo o belo feito de manter intacta a relevância de sua obra, além de criar um dispositivo sonoro que transforma a experiência em possibilidade ampla de experimentação de linguagem. Inquieta como artista, Grace não conseguiria realizar algo que não fosse diferente desse disco voador, que impacta tecnicamente e instiga um debate dentro da narrativa e pós filme. Com o quadro apresentado, a realizadora convida o público e só cabe a ele a adesão imediata ou o incômodo negativo. Se conseguir olhar além da estranheza inicial, será colocado em uma experiência completamente diferente do que o cinema propõe.

O cuidado para com a ambição narrativa que já era presente na peça, reflete no que a dupla de diretores tinham em mente para essa transposição de mídia. Ambos se propuseram um desafio e conseguem realizar essa tarefa com um brilho extra e impensado, ainda que alguns planos pareçam deslocados. A beleza do todo compensa a ousadia de encenar um monólogo no cinema. A direção ainda tem um plus de perfeição representado pelo inominável talento de Grace Passô, atriz. Dona de cada espaço mínimo que a produção dá, Grace reproduz sua belíssima e premiada interpretação dos palcos para a tela com o misto de domínio do material com frescor insuspeito, sem jamais aparentar estar gasto. Pelo contrário, com o talento infinito dessa atriz transformada em diretora cada vez mais evidente, Vaga Carne é a prova de que a atriz pode continuar expandindo suas atividades, se for para crescer assim.

O texto além disso é um bálsamo para qualquer atriz, só que Grace não é uma qualquer. Inteligente, sarcástica, carismática, profunda, divertida, densa, são apenas algumas das características de seu talento que ela empresta a voz do seu filme, aos poucos tomando forma, e impondo a classe artística atual um novo lugar para onde encaixar pessoas foram dos padrões. E, pasmem, Vaga Carne também é sobre isso.

Filme visto na Mostra de Cinema de Tiradentes

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