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Críticas

Cineplayers

Documentário de animação traz à tona massacre de palestinos por israelenses.

8,0

Em 14 de setembro de 1982, o presidente do Líbano, Bashir Gemayel, eleito apenas três semanas antes, foi alvo de um atentado na sede de seu partido. Atordoados pela morte de seu líder e sedentos de vingança, soldados da milícia falangista (cujo fundador fora Pierre Gemayel, pai de Bashir) atribuíram a responsabilidade pelo assassinato aos palestinos ainda residentes em Beirute, muito embora não houvesse qualquer confirmação desse fato. Dois dias depois, eles invadiram os campos de concentração de Sabra e Shatila, ao sul de Beirute, no Líbano, e pelos três dias seguintes, massacraram centenas de homens, mulheres e crianças. Dependendo da fonte consultada, o número de mortes varia entre 700 a 3000 pessoas.

Àquela altura, sob as ordens do seu primeiro-ministro Menachem Begin, e do seu Ministro da Defesa, Ariel Sharon, as tropas do poderoso exército israelense já ocupavam o Líbano. No curto prazo, o objetivo era destruir a estrutura militar da OLP. No longo, absorver a Cisjordânia à Grande Israel. A morte repentina de Bashir, figura chave para o sucesso do plano, colocou tudo por terra. Pra tentar manter sua estratégia ainda de pé, Sharon determinou que seus soldados colaborassem com a represália falangista, seja facilitando o acesso aos campos de refugiados (e fazendo vistas grossas ao que lá ocorria), seja iluminando o local com sinalizadores noturnos.

Um destes soldados era Ari Folman, 19 anos, barba ainda rala e recém-separado da sua namorada. Adulto, Folman se transformou em conceituado roteirista para a televisão israelense e cineasta (a série americana "In Treatment" é baseada na versão por ele criada para a TV local). Decidido a exorcizar o passado e investigar seu papel no episódio do massacre de Sabra e Shatila, o diretor resolveu correr atrás de ex-combatentes da Guerra do Líbano. Valsa com Bashir, desde o início concebido como um documentário de animação, é a soma destes depoimentos, alguns relacionados com a história de Folman, outros não.

O filme abre com a corrida em disparada de vinte e seis cães. Raivosos, eles atropelam tudo o que vem pela frente. A certa altura, a matilha se reúne em frente a uma janela escura. De lá vislumbra-se o rosto de um homem. Ele sabe que os cachorros vieram buscá-lo, que o juram de morte. Neste instante, revela-se que tudo aquilo não era real. Numa mesa de bar, dois amigos conversam. Boaz relata para Folman esse sonho que vem tendo nos últimos dois anos. Boaz associa o sonho a um episódio da Guerra do Líbano. Ao invadir um pequeno vilarejo, vários cães começaram a latir. O comandante da tropa sabia que Boaz era incapaz de matar um ser humano. Por isso, escalou-o a exterminar todos aqueles animais, antes que eles fossem descobertos. Boaz cumpre a ordem e atira nos cachorros. A Guerra pode ter acabado, mas as Boaz vai carregar ainda por muito tempo as marcas daquele evento.

Ao se despedir de Boaz, Folman, sozinho em seu carro, percebe que não guardou nenhuma lembrança da sua passagem pela Guerra do Líbano. Ele estaciona. Sobre a calçada, observa o mar. Era a primeira vez, em 20 anos, que ele voltara a falar com alguém sobre o conflito. Uma recordação lhe vem à mente, uma imagem que será recorrente durante todo o filme: deitados no mar, Folman e mais dois amigos observam os prédios da orla da praia serem iluminados por sinalizadores na noite cor de fogo de Beirute. Eles se levantam e começam a caminhar em direção a areia. Estão nus. E armados. Vestem-se. Chegam às ruas. Folman anda mais à frente. Ele abotoa a camisa. Ao virar uma esquina, se depara com uma procissão de mulheres correndo, desesperadas, com as mãos para cima, como que pedindo algum tipo de ajuda. Para Folman, esta sequência de imagens é a única recordação da Guerra do Líbano.

A primeira pessoa que ele procura é seu amigo psicólogo Ori Sivan. Está intrigado com o fato de nada lembrar sobre um fato tão marcante da sua vida. Sua memória simplesmente se apagou. Folman é incentivado a falar com o máximo de pessoas que combateram no Líbano. Em princípio, ele sente medo de iniciar essa peregrinação. E se ele descobrir coisas que o desabonem como pessoa? Mas o desejo de investigar o passado é maior. Isso o leva a visitar ex-colegas, como Carmi Cna'am, residente na Holanda, e Shmuel Frenkel, que integrara a mesma divisão de combate de Folman. Aos poucos, as recordações vão se aflorando, mais e mais fatos vão surgindo, e Folman começa a ter um quadro mais completo da sua participação da Guerra do Líbano. No entanto, do dia do massacre de Sabra e Shatila, a única lembrança que restou é sempre a mesma: os três soldados nus, observando a noite de Beirute de dentro do mar.

Mais que falar sobre conflitos internacionais, parece-me que o tema central de Valsa com Bashir é o poder da memória, e o quão ela poder ser dinâmica e ao mesmo tempo traiçoeira. Por meio de mecanismos psicológicos inconscientes (ou não), somos capazes de colocar grandes traumas do passado num canto esquecido do nosso cérebro. A falta de memória sobre esses fatos funciona mais como um instinto de auto-preservação. Em outras situações, a memória pode nos trair, fazendo com que criemos em nosso imaginário fatos que não aconteceram no mundo real.

O relato de uma experiência psicológica por Ori Sivan a Folman, na mesa da cozinha, no início do filme, é bem significativo. Segundo ele, as pessoas tem, de fato, a tendência de inventar uma realidade paralela. Nas palavras dele, se alguns detalhes faltam, a memória preenche os buracos com coisas que nunca aconteceram. Ao final, Folman terá a oportunidade de perceber o quão exato estava esse experimento.

O tema da memória é discutido no mesmo diálogo, um pouco mais à frente. Ao perceber que Folman está com receio que embarcar na sua viagem ao passado, Ori Sivan o estimula dizendo que o ser humano não vai a lugares que não se quer. Cita, como exemplo, o fato de, instintivamente, não entrarmos em locais sombrios. A memória, por outro lado, nos leva onde precisamos ir.

Outro debate provocado por Valsa com Bashir é o aparente conflito entre o fato de ele ter sido concebido como documentário de animação. De um lado, o documentário é o gênero que se busca a verdade na sua essência. Por sua vez, o desenho animado vai no sentido oposto, da fantasia, do irreal. Como é possível essa convivência? Valsa com Bashir não apenas lida muito bem com esse problema, como também aproveita-se dele.

Ao retratar os diálogos e depoimentos das pessoas entrevistadas por Folman, o desenho é o mais realista possível. A técnica se assemelha à da rotoscopia, utilizada em filmes como Waking Life e O Homem Duplo, o que já foi negado pelo próprio diretor. Ao contrário de desenhar sobre a película, Folman preferiu filmar em primeiro lugar e, num segundo momento, seus desenhistas tentaram representar aquilo que viram com o máximo de realidade possível. O efeito é excelente.

Por outro lado, na parte das batalhas propriamente ditas não havia o compromisso com algo que já previamente existente. Nesse momento, o recurso do desenho à mão (com o auxilio de alguns efeitos especiais), deixou o diretor à vontade para dar asas à imaginação e fazer de Valsa com Bashir um dos filmes com visual mais inventivos dos últimos anos.  Merecem destaque não apenas toda a sequencia da praia, que resume a única lembrança que Folman guardou do massacre de Sabra e Shatila, mas também o ataque do tanque por um tiro de bazuca disparado por uma criança, a cena que dá título ao filme, em que Fremkel, rodeado por pôsteres de Bashir, sai atirando com sua metralhadora a esmo; e a da alucinação que Carmi tem no navio que o está levando ao front: sentado no convés, ele vê uma bela e gigantesca figura feminina, misto de mãe protetora e mulher sensual. Ela o acolhe e o leva para o mar. Carmi se conforta sobre seu corpo enquanto seu navio, no mundo real, é abatido por ataques aéreos libaneses.

Mas essa dualidade entre a busca pela realidade do documentário e pela fantasia, na animação, é quebrado na sequência final, quando o diretor abre mão dos dois gêneros até ali empregados. Folman parece nos dizer que, em determinados assuntos, não há representação da realidade capaz de ser mais forte e eficaz do que ela mesma. Em outras palavras, podemos dizer que um filme de ficção que pretenda abordar, por exemplo, o Holocausto ou o Ataque das Torres Gêmeas, já deve ter a consciência de que nada superará o fato real em si, por melhor que seja o seu recorte cinematográfico. Em suma, o cinema, mesmo com todos os seus recursos tecnológicos, não é capaz de dar conta de certas realidades.

Entre elas, na opinião de Folman, está o massacre de Sabra e Shatila. Tal a magnitude do episódio, um verdadeiro genocídio a céu aberto e com a benção das autoridades israelenses, que a melhor opção é deixar as imagens reais falarem por si.

É curioso observar que Valsa com Bashir concorreu no Festival de Cannes de 2008, assim como Persépolis, que disputou o mesmo festival um ano antes. Ambos os desenhos, assumidamente autobiográficos, tem a preocupação de revisitar a história de um país e de uma sociedade, a partir do ponto de vista bem particular de seus diretores. São exemplos de como as animações já deixaram há tempos de serem brinquedo de criança, servindo hoje como verdadeiro fórum para a discussão de temas sérios e atualíssimos.

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