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Críticas

Cineplayers

Deslocado, mas ainda inflamado.

6,5

Através da rápida aparição do diretor como uma versão envelhecida do personagem Mookie, interpretado pelo mesmo em sua obra mais conhecida, Faça a Coisa Certa (Do The Right Thing, 1989), Spike Lee relaciona de imediato para seus admiradores o universo do seu novo filme com a primeira fase da sua carreira; Verão em Red Hook é um consciente retorno às origens de um dos cineastas americanos mais interessantes surgidos naquela onda independente do final dos anos oitenta ao lado de Jim Jarmusch e Steven Soderbergh.

Dessa vez, Lee nos faz entrar no Brooklyn através dos olhos de Flik, um garoto de treze anos de Atlanta que é levado pela sua mãe até o bairro de Red Hook para passar algum tempo na casa do avô que ainda não conhece ,Enoch Rouse, o bispo da comunidade cristã local. A adaptação ao lugar não vai ser nem um pouco fácil, já que o mesmo não tem a mínima familiaridade com os ritos e tradições.

Tanto nos temas quanto formalmente falando, o filme ainda respeita o velho estilo de Spike Lee ao apresentar uma enorme quantidade de discursos e pontos de vista divergentes - também era a tônica principal de Faça a Coisa Certa – que citava tanto os discursos pacifistas de Martin Luther King quanto a autodefesa radical de Malcolm X.

Agora o conflito tão explícito lá em 1989 é mais internalizado, talvez um reflexo da maturidade que veio com a idade do diretor;  se antes o assunto era tratado de forma seca e direta, agora veremos sob um escopo que marca um rito de passagem que o jovem Flik tem que enfrentar. Os primeiros minutos são especialmente divertidos ao apresentar o conflito entre gerações: são explorados elementos como o avô nem ter televisão e o garoto andar por aí o dia inteiro com seu Ipad2, ou ainda em momentos como o bispo preparando carne para o neto e o mesmo não querendo comer, por alegar ser vegan.

No final das contas, o filme tenta mesclar o que tematicamente projetou Spike Lee para o mundo do cinema mainstream  - em outros filmes como Febre da Selva (Jungle Fever, 1991) - e o Spike recente,  mais introspectivo e menos controverso que deu resultado em filmes como A Última Noite (The 25th Hour, 2002). Temas como religiosidade, valores e erros passados vêm à tona  em um filme que começa em um ritmo leve mas, com o passar do tempo, vai tornando-se cada vez mais sério e dramático.

A obstinação conservadora e ferrenha do pastor em contraponto à cabeça fresca do menino, passada novamente em um dos dias mais quentes do ano, atmosfera que Lee domina como ninguém, seja em Faça a Coisa Certa ou em O Verão de Sam (Summer of Sam, 1999), cria um filme assim como o seu diretor, inconstante e cheio de altos e baixos. Por mais que seja interessante a fusão de câmeras documentais a tomadas extremamente elaboradas, onde o recorte de luz, a composição de quadro e a paleta cromática do figurino gritam e ardem aos olhos, por outros momentos o filme aposta em cenas resolvidas esquematicamente, que acabam criando um contraste com outras cenas que possuem uma ambição e cuidado estético mais bem resolvidos.

É o que acontece também no roteiro, que realiza uma passagem do leve para o dramático de forma repentina – quando um segredo vital para a trama da relação avô e neto é revelado, o filme muda de tom de forma quase grotesca.  O que não acontecia com Faça a Coisa Certa, filme feito no calor e na raiva de se libertar dos grilhões de ser um garoto negro crescido numa comunidade carente, onde as  únicas possibilidades normalmente ofertadas são tentar a vida nos esportes ou música, trabalho operário pesado ou a vida nas gangues e nas atividades ilegais; o verdadeiro atestado de um jovem revoltado.

Verão em Red Hook é centrado exclusivamente em cima da comunidade negra: sem outros imigrantes por aqui, é surpreendente constatar – quando o diretor sempre fez questão de evidenciar o debate entre afrodescendentes, latinos, asiáticos e europeus. O que tornou Spike Lee um dos mais emblemáticos diretores de Nova York não aparece aqui: o caldeirão multifacetado some para dar lugar a um filme que ora trata sobre diferenças entre gerações, ora sobre erros do passado que tem de ser no final das contas encarados ao invés de se fugir deles.

Mas de qualquer forma, a atmosfera que Lee constrói continua interessante demais para tornar o filme chato. Clarke Peters no papel do bispo é uma das atuações antológicas do seu cinema; enfurecido e enlouquecido em sua performance, é facilmente notada o misto de texto ensaiado com improvisos em cima da hora, que até o destaca bastante do resto do elenco, que não faz muito mais do que recitar suas falas de forma preguiçosa e acabar dando oportunidade para que Clarke engula todos como um dos personagens que se não participam de uma de suas melhores obras, torna-se memorável em sua fúria militante mas também ambígua e culpada; as rimas visuais só reforçam o grande personagem capturado pelas câmeras, totalmente com a assinatura de Spike: um indivíduo que é o conflito de ideias encarnado – dessa vez não passa só por política, mas também por religião, desejo e memória.

Em um crescendo de opressão e violência até o seu final, a crítica de Spike Lee ainda continua forte, mas sente-se que nem sempre a “volta às raízes”, com suas lentes estranhas, cores bizarras e atuações estilizadas em sua estranheza expressiva e expansiva é algo imediatamente bom. No caso, aqui parece que Spike deu um passo para trás ao novamente tentar algo que deu certo uma ou duas vezes quando ele ainda era um um enfant terrible; hoje, anos depois, o resultado é uma obra com ritmo pouco constante, empurrado aos trancos e barrancos em um roteiro um tanto indeciso, mas cheio de coisas para dizer. Talvez fizesse sentido anos atrás, quando seu colorido e suas cenas de movimentação de câmera e atores feitas de forma frenética e ensandecida estavam na crista da onda; ou talvez parecesse demasiado brando, ideologicamente falando. É um filme deslocado em seu próprio tempo.

Uma constante na carreira de Spike , a discussão e a produção feitas de maneira febril e muitas vezes polêmica nem sempre lhe foram benéficas como artista; por muitas vezes pareceu inflamado e raivoso demais, por outras estranho em temas mais delicados e leves e em formatos mais “engessados”; e por vezes, como é o caso aqui, pareceu perdido. Com esse filme fica difícil traçar alguma previsão de como serão seus próximos projetos, que caminho tem a seguir, mas uma coisa é certa: vai dar o que falar. E esse, como sempre, é o efeito que Lee quer obter.

Comentários (1)

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