Abel Ferrara viaja ao inferno à procura da salvação.
Na primeira sequência de Vício Frenético, nosso protagonista, que conhecemos apenas como Lieutenant (posto dele na polícia de Nova York, sua ocupação social), transporta os filhos até a escola, reclamando durante todo o trajeto por terem perdido o ônibus. As crianças descem, atravessam a rua e seguem até o portão. Enquanto aguarda a fila de carros, aproveita para dar umas aspiradas na cocaína que carrega no bolso. O olhar de Harvey Keitel nesta cena resume o personagem: o homem é uma grande incógnita. Preocupação? Indiferença? Culpa? Sua feição parece distante dessas coisas e ao mesmo tempo reunir todas elas. É um enigma pautado pela necessidade, pela incompletude humana.
O tenente interpretado por Keitel é um legítimo personagem de Abel Ferrara. Viciado em álcool, cocaína, crack e apostas, passa o filme todo em busca de algo, sem saber exatamente o que procura. Ferrara é um cineasta de extremos, criado nos guetos, e sua visão de sociedade nos filmes está diretamente ligada à realidade das personagens que constroi, com o estado de espírito e as aflições delas (como exemplo basta lembrarmo-nos da primeira obra do diretor, O Assassino da Furadeira [The Driller Killer, 1979]). Mais do que filmes que registram, são filmes que abraçam as causas de seus protagonistas e, com eles, vão até as últimas conseqüências - sem fazer qualquer tipo de concessão. É por conta disso que aqui chegamos ao limite do que o cinema pode construir em matéria de bad trips.
Vício Frenético é uma descida ao inferno em busca do perdão de deus, e soa tão incoerente posto assim em palavras que só reforça o desespero de seu protagonista. Desespero que Ferrara traduz em imagens tão diretas quanto o possível, simplesmente deixando Keitel agir e observando sua dualidade, acima de tudo, com compreensão e com respeito. Não estamos diante de um homem mau, tampouco de um homem bom (ao menos o diretor não nos impõe este julgamento moral); o que Ferrara nos apresenta é apenas um homem desnorteado, cujo exercício de protetor social está danificado pelas perdições das quais não consegue fugir e que o fazem cometer excessos como utilizar-se de seu ofício para beneficiar suas compras de drogas.
Werner Herzog lançou Vício Frenético (Bad Lieuntenant: Port of Call New Orleans, 2009) afirmando não ser uma refilmagem do filme de Abel Ferrara – o que, convenhamos, é bastante duvidoso. O curioso é como ambos diferem determinantemente em tom e ponto de vista ao colocarem um questionamento de culpa nos ombros de um protagonista (Harvey Keitel) e o retirarem por completo do de outro (Nicolas Cage). É desta forma que o filme de Ferrara se torna uma bomba-relógio minimalista na qual seu personagem, chapado, sofre alucinações com Jesus Cristo e beija seus pés pedindo por misericórdia, enquanto no expansivo e artificial filme de Herzog as alucinações da droga são com iguanas e almas dançando ironicamente sobre seus próprios cadáveres.
O filme de Herzog é delicioso ao abordar subversivamente a situação através do humor negro, mas este Vício Frenético de Abel Ferrara possui sim muito mais força. É uma experiência devastadora, uma legítima viagem maldita, e Hervey Keitel é o protagonista perfeito por conseguir resumir em seu choro seco, duro, abafado, toda a angústia que faz com que este homem não consiga compreender, por exemplo, como é possível o regramento radicalmente católico da freira estuprada fazer com que ela perdoe os delinquentes e se culpe pelo ocorrido. “Jesus transformou água em vinho. Eu deveria ter transformado esperma amargo em esperma fértil, ódio em amor, e talvez tivesse salvado a alma deles. Eles não me amaram, mas eu devia tê-los amado”.
Keitel abandona a igreja ao ouvir isto - sinceramente, eu também abandonaria. E, ainda que ele tente agir com complacência à opção da freira, nem mesmo isso soa como uma redenção. O tenente perdoa, mas continua descrente, guardando suas dúvidas como um câncer que, aos poucos, o mata por dentro. “Suas vidas não valem nada nessa cidade” é o que ele fala para os rapazes. Mas ele pertence a esta cidade. Ele respira esta cidade. E possivelmente se coloque, por conta disso, como um homem tão corrompido pela maldade e pela sujeira existente nela que chegou ao ponto de não haver mais solução para ele. Abel Ferrara fez filmes melhores, mas ao final de Vício Fernético é que escreve, definitivamente, seu testamento cinematográfico.
Excelente crítica e estupendo filme! Mais um monumento de Abel Ferrara!