Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Abel Ferrara viaja ao inferno à procura da salvação.

8,5

Na primeira sequência de Vício Frenético, nosso protagonista, que conhecemos apenas como Lieutenant (posto dele na polícia de Nova York, sua ocupação social), transporta os filhos até a escola, reclamando durante todo o trajeto por terem perdido o ônibus. As crianças descem, atravessam a rua e seguem até o portão. Enquanto aguarda a fila de carros, aproveita para dar umas aspiradas na cocaína que carrega no bolso. O olhar de Harvey Keitel nesta cena resume o personagem: o homem é uma grande incógnita. Preocupação? Indiferença? Culpa? Sua feição parece distante dessas coisas e ao mesmo tempo reunir todas elas. É um enigma pautado pela necessidade, pela incompletude humana.

O tenente interpretado por Keitel é um legítimo personagem de Abel Ferrara. Viciado em álcool, cocaína, crack e apostas, passa o filme todo em busca de algo, sem saber exatamente o que procura. Ferrara é um cineasta de extremos, criado nos guetos, e sua visão de sociedade nos filmes está diretamente ligada à realidade das personagens que constroi, com o estado de espírito e as aflições delas (como exemplo basta lembrarmo-nos da primeira obra do diretor, O Assassino da Furadeira [The Driller Killer, 1979]). Mais do que filmes que registram, são filmes que abraçam as causas de seus protagonistas e, com eles, vão até as últimas conseqüências - sem fazer qualquer tipo de concessão. É por conta disso que aqui chegamos ao limite do que o cinema pode construir em matéria de bad trips.

Vício Frenético é uma descida ao inferno em busca do perdão de deus, e soa tão incoerente posto assim em palavras que só reforça o desespero de seu protagonista. Desespero que Ferrara traduz em imagens tão diretas quanto o possível, simplesmente deixando Keitel agir e observando sua dualidade, acima de tudo, com compreensão e com respeito. Não estamos diante de um homem mau, tampouco de um homem bom (ao menos o diretor não nos impõe este julgamento moral); o que Ferrara nos apresenta é apenas um homem desnorteado, cujo exercício de protetor social está danificado pelas perdições das quais não consegue fugir e que o fazem cometer excessos como utilizar-se de seu ofício para beneficiar suas compras de drogas.

Werner Herzog lançou Vício Frenético (Bad Lieuntenant: Port of Call New Orleans, 2009) afirmando não ser uma refilmagem do filme de Abel Ferrara – o que, convenhamos, é bastante duvidoso. O curioso é como ambos diferem determinantemente em tom e ponto de vista ao colocarem um questionamento de culpa nos ombros de um protagonista (Harvey Keitel) e o retirarem por completo do de outro (Nicolas Cage). É desta forma que o filme de Ferrara se torna uma bomba-relógio minimalista na qual seu personagem, chapado, sofre alucinações com Jesus Cristo e beija seus pés pedindo por misericórdia, enquanto no expansivo e artificial filme de Herzog as alucinações da droga são com iguanas e almas dançando ironicamente sobre seus próprios cadáveres. 

O filme de Herzog é delicioso ao abordar subversivamente a situação através do humor negro, mas este Vício Frenético de Abel Ferrara possui sim muito mais força. É uma experiência devastadora, uma legítima viagem maldita, e Hervey Keitel é o protagonista perfeito por conseguir resumir em seu choro seco, duro, abafado, toda a angústia que faz com que este homem não consiga compreender, por exemplo, como é possível o regramento radicalmente católico da freira estuprada fazer com que ela perdoe os delinquentes e se culpe pelo ocorrido. “Jesus transformou água em vinho. Eu deveria ter transformado esperma amargo em esperma fértil, ódio em amor, e talvez tivesse salvado a alma deles. Eles não me amaram, mas eu devia tê-los amado”.

Keitel abandona a igreja ao ouvir isto - sinceramente, eu também abandonaria.  E, ainda que ele tente agir com complacência à opção da freira, nem mesmo isso soa como uma redenção. O tenente perdoa, mas continua descrente, guardando suas dúvidas como um câncer que, aos poucos, o mata por dentro. “Suas vidas não valem nada nessa cidade” é o que ele fala para os rapazes. Mas ele pertence a esta cidade. Ele respira esta cidade. E possivelmente se coloque, por conta disso, como um homem tão corrompido pela maldade e pela sujeira existente nela que chegou ao ponto de não haver mais solução para ele. Abel Ferrara fez filmes melhores, mas ao final de Vício Fernético é que escreve, definitivamente, seu testamento cinematográfico.

Comentários (1)

Angelão | terça-feira, 17 de Abril de 2012 - 14:00

Excelente crítica e estupendo filme! Mais um monumento de Abel Ferrara!

Faça login para comentar.