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Uma cidade, uma noite em um take.

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Desde o surgimento do cinema, sua função tem sido questionada por teóricos por não se diferenciar muito de outras artes, como a do teatro. Após David W. Griffith criar os conceitos de plano e contra-plano, montagem paralela, continuidade e diversas outras técnicas que ajudaram a formar a linguagem cinematográfica, diversos cineastas vêm reinventando e criando novos significados para o que hoje em dia chamamos de sétima arte. Após apenas pouco mais de cem anos, ficou mais difícil encontrar filmes que nos surpreendam da mesma maneira que Griffith surpreendeu o público ao lançamento de O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 2015) - ou como quando Eisenstein mostrou A Greve (Stachka, 1925) e O Encouraçado Potenkim (Bronenosets Potyomkin, 1925). Muitas pessoas dizem que este tipo de cinema está morto, mas raramente encontramos filmes que nos voltam a mostrar um glimpse do que o cinema ainda é capaz. Victoria (idem, 2015), de Sebastian Schipper, é um destes filmes.

O filme em plano-sequência acabou virando moda depois do lançamento de Birdman, uma abordagem que na verdade não é nenhum pouco nova no mundo cinematográfico. Hitchcock quis fazer seu filme Festim Diabólico (Rope, 1948) em apenas um take, porém, pelo fato dos rolos sustentarem apenas 1000 pés de 35 mm, o filme acabou tendo 10 cortes com uma duração de cinco a dez minutos cada - números surpreendentes para um filme de 80 minutos feito no fim dos anos 40. A mais famosa obra feita em apenas um take é Arca Russa (Russkiy Kovcheg, 2002), de Aleksandr Sokurov, que revive momentos do império russo por um museu durante 96 minutos. Não precisamos nem falar de Tarkovsky, que praticamente é conhecido como o pai do plano-sequência ao usar a duração de um take como uma oportunidade para esculpir o tempo no cinema. A importante questão é, o que faz do filme Victoria necessitar de um único shot para contar sua história e como este filme se diferencia dos demais que usam a mesma técnica?

Começando a falar sobre a sinopse, Victoria não conta nada que já não vimos antes, porém, sua história definitivamente não é a atração principal do filme, mas sim, a maneira como ela é contada. O filme narra a história da personagem do título, uma jovem de Madri que está morando em Berlim e aparentemente não conhece ninguém. Numa certa noite, Victoria chama a atenção de um grupo de rapazes fora de uma boate que estão envolvidos em atividades ilícitas. Tendo uma conexão imediata com os rapazes, Victoria faz amizade e acaba participando de um trabalho com eles envolvendo o roubo de um banco.

Ao contar uma história que narra a experiência de uma noite, Sebastian Schipper usa seu único take para criar uma diegese onde tudo acontece em tempo real. Acompanhamos Victoria por duas horas e dez minutos de uma noite, característica similar ao clássico Cléo das 5 as 7 de Agnes Varda, onde acompanhamos duas horas da vida de Cléo em um dia em Paris.  Se isso já não fosse interessante o suficiente, Sebastian opta por escolhas criativas em sua direção, que faz de Victoria um filme diferente de qualquer outro, como sua abordagem da perspectiva da realidade e do inconsciente dos personagens. Os primeiros trinta minutos, por exemplo, são gastos em conversas inúteis entre Victoria e os rapazes, um desenvolvimento natural dos personagens apresentado de uma maneira extremamente natural e realista. Em outros momentos, porém, o diretor opta por usa música extra-diegética para criar emoções em cenas específicas, como quando Victoria e os rapazes vão dançar na boate, mas a música que ouvimos é lenta.

O filme vai ainda mais longe quando se trata do trabalho de câmera. Afinal, é um filme em um único take e o verdadeiro artista aqui é o cameraman, Sturla Brandth Grøvlen (ele é o primeiro nome que aparece nos créditos no final do filme, antes mesmo do diretor). A fotografia não é incrível, sendo praticamente 100% o uso de câmera na mão e, muitas vezes, as cenas não possuem foco. Porém, é a sua misé en scene que é mostrada, e não a do diretor. Com isso, Sturla também opta por escolhas interessantes ao decidir o que mostrar e não mostrar na tela. Afinal, ele se move livremente entre os personagens e às vezes parece que ele mesmo se dá um jeito de seguir a história, como se os personagens fossem pessoas reais e ele está apenas testemunhando os acontecimentos. Com isso, Starla cria personalidade em sua performance ao tomar decisões que dão vida ao filme, como optar por ficar no carro com Victoria enquanto os rapazes roubam o banco, causando nervosismo na cena por não sabermos o que está acontecendo. Ou até mesmo na linda cena quando Victoria conta como ela aprendeu a tocar piano, focando mais em suas mãos que tremem, vão à boca e ao cabelo para mostrar o quão nervosa ela está.

Outro fator interessante, também, é que quando você acha que o filme vai terminar, a projeção ainda possui 40 minutos restantes, causando uma sensação muito parecida com o que Tarkovsky descreve sobre seus longos planos ao dizer que assistir um plano longo é chato, mas se é prolongado o suficiente, o plano se torna interessante e ganha um novo significado. Falo isso porque Victoria poderia muito bem ter terminado depois do roubo do banco. Porém, o diretor nos leva muito mais além, criando uma sequência de eventos que não está nem no nosso controle ou no controle dos personagens, resultando não só num desfecho chocante, mas também, uma interessante aproximação da realidade.

Victoria poderia terminar em diversos momentos de seus últimos trinta minutos, porém, ao mesmo tempo, o filme poderia continuar depois de seu corte final. O que nem chega a ser realmente um corte, mas sim, o fato da câmera parar de seguir o personagem de Victoria até perdermos ela de vista. A sensação, porém, é que poderíamos continuar a assistir a vida dela e isso é algo que nunca senti antes. Claro que já vimos filmes onde queríamos saber o que acontece depois, mas a diegese de Victoria é tão real e natural que sentimos como se estivéssemos literalmente dentro do universo do filme. Como se estivéssemos vendo um filme feito em 360 graus onde acompanhamos os personagens principais. Claro que isso não é possível, mas depois de Victoria, acredito que estamos apenas mais um passo a frente de chegar lá. Um filme para se ver mais de uma vez e nunca se cansar.

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