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Críticas

Cineplayers

Vidas que se Cruzam prova que na condição de diretor, Guillermo Arriaga é um bom roteirista.

5,0

Logo após o lançamento de Babel nos cinemas americanos, por volta outubro de 2006, veio a público a troca de farpas entre o diretor Alejandro Iñárritu e seu roteirista de todas as horas, Guillermo Arriaga. Segundo Arriaga, ele seria o responsável por grande parte da estrutura de Amores Brutos e de 21 Gramas, o que lhe daria o direito de reclamar boa parcela da autoria de ambos os filmes. Em resposta, Iñárritu o proibiu de freqüentar as exibições de Babel no Festival de Cannes daquele ano. Pouco tempo depois, como que comprando a briga, Arriaga anunciou que debutaria na direção com The Burning Plain, o novo roteiro que acabara de concluir.  Visto agora, é interessante observar que se o Arriaga-roteirista não perdeu seu jeito na construção das histórias, ainda falta ao Arriaga-diretor mais ousadia no aprofundamento dos conflitos dos personagens. Vidas que se Cruzam, título que o filme recebeu no Brasil, sente falta de um Iñárritu.

A narrativa começa no Novo México, com o plano geral de um trailer em chamas. Logo saberemos que em seu interior, estavam Gina (Kim Basinger) e Nick (Joaquim de Almeida), um casal de amantes. Ela, esposa de um caminhoneiro e mãe de quatro filhos. Ele, também casad e com dois filhos para criar. Eles faziam sexo no momento em que veículo, por algum motivo ainda obscuro, foi pelos ares. No momento do enterro de ambos, as respectivas famílias se cruzam. Em meio à tristeza pela perda de pessoas tão próximas, e o constrangimento pelo modo como ela ocorrera, a filha de Gina, Mariana (Jennifer Lawrence) e o filho de Nick, Santiago (J.D. Pardo), percebem que podem encontrar um no outro as respostas que lhes faltam.

Paralelamente, em Portland, estado do Oregon, Sylvia (Charlize Theron) é a administradora de um restaurante à beira-mar. Algo a consome. Alguma dor invisível ligada ao seu passado a coloca num processo de auto-destruição. Durante o dia, Sylvia recebe seus clientes, preocupa-se em manter cheio o copo dos políticos que freqüentam seu estabelecimento,  e recomenda saborosos vinhos Bordeaux. Após o expediente, vai para a cama com qualquer homem que lhe dê uma cantada, que pode vir de um de seus funcionários ou um de cliente mais ousado.

Há uma terceira história, em que Maria (Tessa La), uma garota mexicana, acompanha o pai (Danny Pino) no seu trabalho de despejar inseticidas sobre terrenos rurais. Eventualmente, um acidente aéreo vai relacionar todos esses episódios.

Como nos outros roteiros de Arriaga (e aqui deve se incluir Três Enterros, dirigido por Tommy Lee Jones), as diversas histórias e personagens de Vidas que se Cruzam vão se revelando aos poucos. Também como em seus outros trabalhos, os primeiros minutos são narrados de forma descontínua, o que faz com o espectador fique meio perdido no meio de tantos nomes e fatos. Mas logo as conexões surgem, o novelo de lã vai de desfazendo e o filme começa a surgir na nossa frente.

Os personagens de Arriaga sempre carregam angústias do passado e caminham no presente em busca da salvação pessoal. Foi assim com o mendigo de Amores Brutos, que sacrificara o relacionamento com sua filha em nome da luta armada; com Benicio Del Toro, que se deixa ser preso após ter atropelado as filhas de Naomi Watts; e com o casal Brad Pitt e Cate Blanchett, que vê numa viagem para o Marrocos a solução para a crise do seu casamento.

Com Vidas que se Cruzam não é diferente. Gina e o marido não se dão bem na cama. Por algum motivo, ele não consegue ir até o final do ato sexual. Ela parece achar que os problemas são relacionados à cirurgia que lhe obrigou a retirada de um dos seios. Insatisfeita e frustrada, Gina encontra no fazendeiro Nick um homem mais presente e que a respeita como mulher. Eles se encontram no meio do deserto, no trailer dele. Ela sabe que aquele relacionamento extraconjugal coloca em risco até mesmo o relacionamento com seus quatro filhos. Mesmo assim, entre a culpa e a satisfação de ser vista como uma mulher atraente, ela segue em frente.

Sylvia, por sua vez, parece carregar uma culpa tão grande, que o suicídio é uma hipótese que ela considerada regularmente. Na falta de coragem para um ato tão extremo, Sylvia encontra na auto-mutilação e na dor física a única forma de esquecer o mal que aflige sua alma. No sexo com desconhecidos, ela busca uma voz de aprovação, um apoio, um colo. Por vezes é rejeitada. Nessas horas, com um apelo quase infantil, indaga: “Por que? Você não gosta de mim?”.

Talvez o grande problema de Vidas que se Cruzam seja a falta de aprofundamento em cada uma destas histórias. Se no papel, elas eram potencialmente ricas, na tela, soam flácidas, frias, sem emoção. De um lado, Arriaga poderia dar uma maior densidade aos seus personagens, fornecendo ao espectador mais detalhes sobre seus passados. Não sabemos, por exemplo, como o romance adúltero entre Gina e Nick começou. Quando os vemos fazendo sexo no trailer, não conseguimos captar a real dimensão daquele envolvimento. Gina parece estar entrando de cabeça, mas e Nick? Ele surge sempre disposto, esperando por ela. Mas  não sabemos se o seu discurso coincide com suas ações. Ele realmente pensa em se separar da sua esposa e dos filhos? Ele está se apaixonando por Gina? E quanto à menina Maria? Ela já aparece no filme como uma pré-adolescente, ao lado do pai, quando seria importante termos visto algo da sua infância. Esse hiato de informações, impede que nos relacionemos com a obra de uma forma mais intensa. Vidas que se Cruzam é um filme que pedia uma metragem mais longa.

No fundo, todos esses problemas derivam provavelmente da escolha de Arriaga de contar histórias ambientadas em diferentes espaços temporais. O cruzamento de tramas dá mais certo quando elas ocorrem simultaneamente e separadas apenas por uma pequeno espaço físico (uma comunidade, uma cidade). Foi assim em Amores Brutos, 21 Gramas e, em menor grau, em Babel. Em Amores Brutos, por exemplo, a fuga de carro do personagem de Gael Garcia Bernal provoca o acidente e torna a modelo paraplégica. Como o filme nos faz acompanhar a vida daquelas duas pessoas, sabemos que, cedo ou tarde, o destino de ambos se encontrará. Quando assistimos à seqüência da colisão dos veículos, o efeito é devastador. Em Vidas que se Cruzam é diferente. Os dois principais núcleos do filme estão separados por alguns anos, o que minimiza o impacto da montagem paralela. Para sermos justos, o que Arriaga faz nem é bem uma montagem paralela, mas sim contar duas histórias praticamente  independentes entre si, cujos efeitos se darão apenas no longo prazo. Os roteiros em mosaico de Arriaga pedem mais urgência e imediatismo.

Vidas que se Cruzam estreou nos EUA no segundo semestre de 2009. A intenção do estúdio era que o filme rendesse uma indicação ao Oscar à sua protagonista, Charlize Theron. No entanto, ainda que todos concordem que ela não é apenas um rosto (muito) bonito, Theron ressente-se de cenas de maior impacto. E aqui a culpa é mais do roteiro do que dela. Melhor que Theron está Basinger. Mesmo defendendo um personagem mal desenvolvido, Basinger brilha na seqüência em que revela a seu amante a cicatriz em seu seio esquerdo. Outro destaque vai para a jovem Jennifer Lawrence, como a jovem Mariana. O restante do elenco dá conta do recado, ainda que nenhum dos papéis tenha maior importância dentro do filme.

Se Vidas que se Cruzam não servisse para nada, ele ao menos provoca um interessante debate sobre quem seria o verdadeiro autor no cinema. Não há dúvida que os filmes são resultados de um grande esforço coletivo. Mas se eles representam a visão de mundo de uma única pessoa, quem seria ela: o diretor ou o roteirista? No caso de Arriaga, talvez não seja coincidência o fato de que Vidas que se Cruzam é um filme bem inferior aos outros que também se basearam em roteiros seus mas que foram dirigidos por outras pessoas. É claro que Arriaga pode e deve voltar a dirigir outros filme no futuro, mas o fato é que, no braço de ferro que ele quis criar com seu ex-parceiro e hoje desafeto Iñárritu, Arriaga provou que os diretores são as verdadeiras estrelas do pedaço.

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