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Críticas

Cineplayers

A vaidade do dever sem propósito.

6,0
Australiano tido em alta conta por projetos anteriores, Reino Animal (2010) e The Rover - A Caçada (2014), David Michôd chamou a atenção do público - no primeiro filme, explorou a vida de uma família criminosa com tal impacto que lhe valeu comparações com Martin Scorsese; no segundo, narrou uma história de vingança em um mundo pós-apocalíptico que muitos sentiram uma evocação dos melhores e mais secos westerns. 
 
Analisando por esse lado, War Machine, a grande produção de Michôd feita numa parceria com a gigante do streaming Netflix, chega como uma surpresa: é uma adaptação do livro de não-ficção The Operators, onde seu autor, Michael Hastings, detalha as viagens feitas com o general Stanley McChrystal e sua equipe durante 2009 e 2010, quando tomaram para si a missão de liderar a ISAF (International Security Assistance Force), missão da OTAN que visou controlar as consequências da guerra do Afeganistão. A surpresa surge quando o filme se vende como uma dramédia, ao mesmo tempo satirizando e explorando os desdobramentos de uma guerra que se arrastou muito mais que o necessário.
 
O longa é narrado em off por Scott McNairy, um jornalista da Rolling Stone encarregado de escrever um artigo sobre o general McMahon, recriação fictícia de McChrystal interpretada por Brad Pitt. Ao mesmo tempo em que serve como guia em meio àquele universo onde o conflito está em fogo baixo, a narração também é um dos grandes tiros no pé do filme: com o tempo, acaba por revelar-se explicativa demais, não apenas informando mas também refletindo pelo espectador sobre a futilidade da guerra.
 
Como um todo, o filme é irregular, com pouca ou nenhuma unidade: Brad Pitt interpreta McMahon de forma bizarramente similar ao Tenente Aldo Raine, seu protagonista no neoclássico Bastardos Inglórios (2009). A mistura de sotaque pesado, sarcasmo, paixão pela violência e o jeito obtuso parece aos olhos do espectador quase como uma paródia do personagem já altamente caricatural, inserido em uma narrativa episódica desgovernada e sem propósito que faz parecer, de início, que o personagem de Tarantino foi largado dentro do universo de M*A*S*H* (1970), clássico filme de guerra (e posterior série) dirigido por Robert Altman que fazia piada da Guerra do Vietnã para evidenciar o horror da situação.
 
E War Machine sabe fazer rir… Até o ponto que tem que fazer drama com aqueles homens que carregam sua missão como um dever santo. Orgulhosos em atuar como “a polícia do mundo”, os soldados são retratados antes de qualquer coisa procurando alimentos para seus egos inflados, como a narração em off explica didaticamente em certo momento. E McMahon, único personagem desenvolvido no conceito do filme de explorar a mistura de idiotia de costumes, fracasso na vida profissional e particular, com o orgulho excessivo demais para lidar com a ideia de não ter sucedido, carregando o filme nas costas em todo seu ritmo problemático.
 
Inconstante, as duas horas do filme parecem até mais; vai encontrando um certo ritmo em seu final, quando após negociarem com os governos de outros países para garantir tropas que reprimam a insurgência do Talibã o lado dramático do filme começa a florescer e tudo o que a sátira fez questão de ridicularizar e a narração fez questão de explicitar vem à tona: o homem que se preparou a vida toda para a guerra, que só vê a mulher um mês durante um ano por causa da mesma, que trata seu pequeno grupo de imediatos como a família que não consegue construir (a ponto de derramar lágrimas em seu aniversário de casamento quando a mulher o coloca contra a parede) e consegue colocar soldados em campo.
 
Nesse ponto, McMahon já foi humilhado na frente de toda uma audiência ao ser chamado de iludido por uma jornalista alemã em uma ponta de Tilda Swinton; não consegue encontrar com o presidente Obama e inicia atritos com os membros da sociedade civil americana e de outros exércitos, sofre uma rejeição após a outra em todos os ambientes onde vai. Em seu terço final, o filme quase não se permite gracejos: vemos a queda de um homem que dedicou a vida a uma causa, e na hora de ser considerado um herói de sua geração, não o foi; foi vítima do lado prático, da realidade que se demonstra pouco ideológica e ainda menos utópica como só a mesma consegue ser.
 
Há elementos de um grande filme dentro do caos desencontrado de Michôd; mas ao tentar arrancar reflexões à força, mesclando drama cadenciado, cenas de ação e diálogos injetados de dramaturgia absurda, fica irregular e muitas vezes aborrecido. Não nos é concedido o direito de extrair nossas próprias conclusões; é difícil saber se é para rir do ridículo ou sentir empatia pelo patético, concluído com um final frouxo que embala o ponto pretendido mas jamais é dramaturgicamente satisfatório. 
 
Se trabalhasse melhor a progressão psicológica (o soldado enlouquecendo durante um tiroteio é um belo momento mas que soa solto), investisse mais na relação entre os personagens, desenvolvesse além do protagonista e seu inferno particular, teríamos um filme bem mais resolvido em fabular sobre a vaidade no cumprimento de um dever que se promete glorioso e revela-se esvaziado, a via crucis tão bem filmada por cineastas como Kathryn Bigelow em filmes como Guerra ao Terror (2008) e A Hora Mais Escura (2013); um caminho composto por tédio e horror que revela-se sem catarse em seu loop infinito de guerras que reafirmam poderio bélico e econômico.
 
A tônica dos filmes das guerras do Oriente Médio é que seus soldados julgam estar combatendo em nome de valores americanos de honra e justiça, assim como A Grande Geração da Segunda Grande Guerra ou os Pais Fundadores que fizeram a América do Norte o que ela é hoje; sua grande tragédia é o descortinamento da mesma, quando veem que a tal América que acreditam vê a guerra como negócio, trocou valores por uma caçada incessante pelo sucesso. 
 
A desumanização que enfrentam, forçados a matar e se expôr à morte, de chocar o próprio orgulho com uma realidade que os rejeita, de descobrir que seu dever é sem propósito compõem um painel no mínimo interessante de filmes que revisaram o zeitgeist, o estado das coisas e o espírito de seu país nos últimos dez anos: além dos já citados filmes de Bigelow, é válido também mencionar Soldado Anônimo (2005), Sniper Americano (2014), Guerra Sem Cortes (2007), entre outros.
 
Ainda que pouco memorável ou mesmo icônico, War Machine tem qualidades o suficiente para ser estudado como mais um dos amargurados verbetes do novo filme de guerra, agenda temática da indústria americana que ganha cada vez mais força.

Comentários (2)

Davi de Almeida Rezende | quarta-feira, 07 de Junho de 2017 - 16:04

Não li a crítica. Mas filme do Netflix, a chance de ser bom, até pelo trailer bobo que vi, é quase nula.

Ravel Macedo | quarta-feira, 07 de Junho de 2017 - 22:35

A sensação fica por ai mesmo. Existem mensagens ali, mas sem impacto, muito diluído pela narração e a própria irregularidade do roteiro.

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