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Críticas

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Reflexão em voz alta, Zona do Crime aguça o olhar para as provas gritantes da segregação social e suas múltiplas conseqüências.

8,0

Li O Mundo de Sofia há muitos anos, e de seu enredo a idéia mais forte que me sobrou foi a de "nunca deixar de me admirar diante das coisas". E a força dessa idéia de vez em quando me espeta a bunda, dizendo: incomode-se! O que vem acontecendo em nossa sociedade só pode ser reflexo de um crescente movimento de acomodação. De outra forma, como explicar aceitarmos calados uma série de indignidades que se passam bem diante de nós? Não estou aqui para apontar culpados e sim para explicitar um problema. Rodrigo Plá também.

Com Zona do Crime o que o diretor aponta é que não há muro suficientemente grande para nos separar da vida real. A primeira cena é bem clara quanto a isso: Trafegando por uma rua impecável, a visão refletida nos vidros do carro de Alejandro (Daniel Tovar) assusta pela diferença. De um lado a artificialidade de um condomínio de beleza planejada. Do outro a força da favela que ocupa espaços, sem saber direito em que direção crescer e nem pra onde ir.

Um oásis de plástico em meio à realidade suja chama a atenção de todos que não podem usufruir dele. La Zona, um condomínio fictício na Cidade do México é o personagem dessa história. Gozando de regalias inconciliáveis com o outro lado, La Zona é a falsa segurança vendida nos jornais a quem pode comprá-la. E por falar em comprar, um outdoor é o veículo através do qual a história começa. Numa noite de chuva forte, o anúncio cai sobre o muro do condomínio e abre espaço para que três homens, dentre eles o adolescente Miguel (Alan Chávez), penetrem para desestruturar a vida dos moradores. Num assalto frustrado, várias mortes abalam a estrutura do La Zona e aprisionam forçosamente Miguel, estressando o paradoxo da desigualdade, já que estar lá dentro é um sonho para muitos.  Mas não nesse caso. Não dessa forma.

O que se vê a partir daí é a ruptura de várias ordens: júri, juiz e executor personificados na figura da massa de condôminos do La Zona, que para escapar da violência crescente que os cerca, recriam as leis que pretendem seguir, sem o menor discernimento sobre o que é o bem coletivo. E por puro instinto de defesa diante da falibilidade das estruturas governamentais – desacreditadas pela corrupção e personificadas no filme pelo personagem do comandante Rigoberto (Mario Zaragoza) – empreendem uma busca cega a Miguel, aquele a quem se impinge a culpa, pois alguém precisa ser urgentemente culpado.

Através da relação entre Alejandro e Miguel acompanhamos o amadurecimento de ambos, que em determinado momento conseguem enxergarem-se a si mesmos como dois lados de uma mesma moeda, adolescentes que são, separados de uma convivência sadia pela segregação e distorção de valores.  Ao final eles conseguem reconhecer em si mesmos a coexistência da culpa e da inocência. Mas não se enganem, pois a catarse final não é nem um pouco feliz.

Rodrigo Plá, apesar dos poucos trabalhos, já traz no currículo uma série de prêmios, inclusive um Oscar de melhor curta estrangeiro por Ojo en La Nuca, estrelado por Gael Garcia Bernal. Com Zona do Crime ele também foi premiado: No Festival de Cannes 2007 o filme levou o prêmio Leão do Futuro, dado a diretores estreantes. Em parceria constante com sua esposa, Laura Santullo – autora do conto que deu origem ao roteiro de Zona do Crime -, o diretor já conseguiu inserir seu mais novo trabalho, Desierto Adentro, na mostra de Cannes desse ano.

E todos esses prêmios só podem significar que vale a pena sair de casa para conhecer o cinema de Plá e também para indignar-se diante dessa história, ficticiamente ocorrida num condomínio mexicano, seria facilmente transposta para o dia-a-dia brasileiro. Inclusive, suas exibições de pré-estréia em ONGs e faculdades têm causado inflamadas discussões sobre o tema e o diretor deve satisfazer-se em algum nível com isso, já que fez um filme para acender o incômodo onde ele parece apagado; para que seja impossível não tomar um partido, e talvez por isso mesmo tenha sido taxado por alguns de maniqueísta, coisa que discordo, já que o saldo final dessa história é mostrar que todos estão certos e errados ao mesmo tempo e que uma terceira possibilidade entre essas duas pontas deve ser criada. Outros ainda reclamaram do excesso de melodrama, coisa que em alguns pequenos instantes também chegou a me incomodar. Mas se no âmbito do real, questões como essa são tratadas com grande carga de sentimentalidade e quase nada de racionalismo, porque negar isso justamente no âmbito da ficção?

Se o cinema é espaço para se lançar em forma de ficção assuntos da pauta do dia cuja discussão se faz urgente, basta olhar para títulos recentes que tratam do mesmo tema, como Valente, filme estrelado por Jodie Foster, em que depois de uma perda irreparável sua personagem sai em busca de uma justiça solitária, que acaba descambando para uma vingança cega. E se fazer cinema é refletir em voz alta, Rodrigo Plá gritou o suficiente. Resta saber quem saberá ouvi-lo.

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