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Críticas

Cineplayers

A melhor ficção é muito mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo.

10,0

Tentar encontrar um adjetivo – ou até vários deles – para encaixotar Hunter S. Thompson em um box tamanho padrão no supermercado dos estereótipos é tão ineficaz quanto escrever sobre o próprio, já que as experiências e histórias escritas por ele são a melhor tradução de sua criatividade e permanecem vivas para além de quaisquer problemas com a validade de suas fontes.

Figura sui generis surgida nas bordas do jornalismo cultural norte-americano, cujos maiores expoentes foram Truman Capote, Norman Mailer e o próprio Thompson (apesar da controvérsia acadêmica que envolve essa questão), ele é ainda um nome pouco conhecido do grande público brasileiro, apesar do que se possa dizer das sessões lotadas de Gonzo: Um Delírio Americano no último Festival do Rio, e numa sala com 66 lugares HST fez muita gente sentar no chão como exercício ao desapego pelas convenções, “prática subversiva” tão em voga entre os muito politicamente corretos de hoje.

Acusado e ao mesmo tempo cultuado por sua iconoclastia, a figura do escritor está também fortemente associada ao uso de substâncias ilícitas de todas as cores, formas e sabores, e naturalizando o discurso sobre o uso de drogas em seus textos, Thompson foi figura fundamental entre os escritores carimbados com o rótulo da contracultura, termo que ganhou usabilidade a partir da década de 1960 quando vários movimentos de cunho político e cultural levantaram a voz para reclamar das práticas culturais hegemônicas.

Tratando de familiarizar quem é órfão das histórias do escritor, nada melhor do que tentar domar o conceito de jornalismo gonzo, sem dúvida o maior legado de Hunter para a sociedade pop-contemporânea. E se falamos em domar é justamente porque a criatura, assim como seu criador, eram/são peças difíceis de serem classificadas de uma maneira, digamos, convencionalmente fácil. Sucintamente, o estilo gonzo de jornalismo subverte a neutralidade e imparcialidade jornalística utilizando a primeira pessoa do discurso e fazendo do fato retratado uma experiência inegavelmente pessoal, numa resposta à super acumulação de conteúdos despejados sobre nós pela cultura midiática e alegando implicitamente que os limites e regras impostas pelo jornalismo clássico já não são capazes de traduzir a experiência diária e absurda da vida cotidiana. O mais importante não é o fato em si, mas a maneira como ele é contado, portanto outra característica do estilo gonzo é a banalidade ou absurdez das pautas escolhidas.

A trajetória do escritor e a confusa relação entre sua vida privada e suas reportagens são o fio condutor desse documentário dirigido por Alex Gibney, ganhador do Oscar 2007 de melhor documentário com Um Táxi Para a Escuridão, trazendo às telas o primeiro registro cine-documental sobre a vida do escritor que já esteve ficcionalmente presente nas telas em Uma Espécie em Extinção (Where The Buffalo Roam, 1980), interpretado por Bill Murray, e no mais conhecido Medo e Delírio (Fear and Loathing In Las Vegas, 1998), baseado na reportagem que rendeu ao escritor o batismo de seu estilo, quando Bill Cardoso então repórter do Boston Sunday Globe qualificou o texto de Hunter com o adjetivo de múltiplos usos e nenhum significado: Gonzo. Esse filme também foi o responsável pela aproximação entre o escritor e o ator Johnny Depp, que durante a pesquisa para composição do personagem acabou tornando-se amigo de Hunter, com direito a possuir um quarto na famosa propriedade Owl Farm, o refúgio de HST.

Essa amizade entre Hunter e Depp serviu inclusive para que Gibney pudesse finalmente rodar o documentário, já que após o suicídio do escritor em fevereiro de 2005, poucas pessoas estavam dispostas a falar da importância do controverso personagem, que entre outras coisas se indispôs com um candidato à Casa Branca a ponto de ajudar na derrocada de sua campanha. Assim, quando Johnny Depp resolveu participar do filme lendo excertos dos textos de Hunter, o diretor ganhou o lastro de credibilidade que lhe faltava para levar o trabalho à diante.

O que surge daí é uma colagem de registros caseiros e raros, aparições na televisão e comentários daqueles que de uma maneira ou de outra (leia-se: amigos ou inimigos) faziam parte do dia-a-dia do personagem. Contando com depoimentos diversos como o do ex-presidente americano Jimmy Carter ou do editor da Rolling Stone Jann Wenner – que ao final do filme aparece bastante emocionado -, são destaque também os depoimentos do escritor Tom Wolfe e dos familiares de Hunter, principalmente o de sua ex-mulher Sandy e de seu único filho, Juan, que conta como foi encontrá-lo após o fatídico tiro. A partir dessa colcha tecida com os retalhos das falas de Thompson arrematados pelos depoimentos de quem esteve próximo a ele é possível montar uma idéia de quão embaralhada era a cabeça desse homem, louco por armas, drogas e literatura, e as motivações em geral patrióticas de quem se colocou no papel de crítico mordaz dos enfadonhos jogos de poder e da política de seu país. Dizem que a preocupação do escritor com o futuro dos EUA foi potencializada pela reeleição de Bush, fato que lhe jogou num poço de depressão ainda mais fundo que o normal.

Para os fãs é a possibilidade de ouvir da boca do próprio Hunter - ou quem sabe de Raoul Duke, uma versão ainda mais louca e visceral de HST – que nada do que seja escrito ou filmado sobre ele traduz a experiência que foi viver durante um ano entre os motoqueiros dos Hell’s Angels ou mobilizar o país em torno da campanha para delegado em Aspen, em que Thompson se lançou a candidato com uma plataforma nonsense, pregando explicitamente a liberalização do consumo de drogas. O mais interessante é que naqueles lindos anos de 1960 ele conseguiu perder por pouco, muito pouco.

Identificar que a pretensa loucura atribuída ao escritor acaba por esvaziar o sentido da crítica social embutida em textos inteligentes que misturavam e atualizam o repertório, ao mesmo tempo, da literatura e do jornalismo com doses de cultura pop, parece o objetivo de Alex Gibney nessa busca por uma verdade qualquer na história do homem Hunter S. Thompson.

Se Medo e Delírio foi o filme "mais lido" dele, é preciso que se fale desse documentário que Doc – como era também conhecido – ganha todinho pra ele, com a justeza de se embalsamar mais uma dessas figuras que nunca deveriam morrer.

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