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Críticas

Cineplayers

Híbrido entre musical e videoclipe, Moonwalker é a incursão de Michael Jackson no cinema.

7,0

Os caminhos do cinema e os de artistas da música popular, ao que parece, encontraram intersecções em momentos memoráveis. Sem se referir especificamente às obras da era dos musicais, como Cantando na Chuva, nem mesmo aos documentários e shows filmados, como o recente The Rolling Stones - Shine a Light, que por si só já renderiam listas infindáveis, um caso interessante deste tipo de relação música e cinema refere-se aos filmes de ficção feitos "para" o artista musical, girando inteiramente em torno dele, e não simplesmente “com” ou “sobre” o artista. A extensa filmografia dos filmes de Elvis Presley é um bom exemplo desse tipo de cinema. Os filmes dos Beatles, em especial Os Reis do Iê Iê Iê, também. Poucos tiveram este tipo de privilégio, porém Michael Jackson foi um deles com Moonwalker.

Com o título inspirado no famoso passo de dança moonwalk, Moonwalker veio ao mundo no momento de maior auge artístico e de popularidade de Michael Jackson, em 1988. Naquela altura, já era o artista (ou mesmo o homem) mais famoso do mundo, seu disco anterior "Thriller" já havia se tornado o maior sucesso da história da música gravada, e o recém-lançado “Bad” era um sucesso absoluto em vendas. Aliás, o filme todo é baseado nas canções deste álbum, e predominantemente todos os números musicais e temas partem deste disco especificamente, o que nesse sentido pode remeter também a ideia de que o filme fazia parte da divulgação do novo lançamento fonográfico.

Como já é de tradição dos filmes simplesmente feitos para artistas da música pop, não se pode esperar um roteiro coerente à moda do modelo de cinema comercial vigente. Moonwalker é um filme despido de lógica, de princípios aristotélicos de linearidade, de estrutura de atos, de desenvolvimento de personagens, da relação “tensão x resolução”, final edificante etc. Analisado sob o ponto de vista de um filme de ficção trivial, Moonwalker é provavelmente uma grande aberração. Mas isso não é, neste caso, um problema. Até porque a ideia, ao que tudo indica, não era essa. Moonwalker precisa ser encarado como uma experiência audiovisual, uma obra experimental, um filme híbrido entre o cinema musical e o nascente videoclipe moderno tal qual temos hoje, o qual o próprio Michael Jackson foi o principal responsável e mentor.

O filme tem início com a apresentação ao vivo de “Man in the Mirror”, talvez a mais bela e engajada de suas canções. Logo após, de forma no mínimo despojada, o espectador é apresentado a uma série de clipes e segmentos musicais. Chama a atenção o pioneirismo gráfico de “Leave me Alone”, uma obra surrealista na forma de videoclipe que rendeu o Grammy de melhor vídeo – lembra um bocado até O Submarino Amarelo. Porém, desta primeira parte do filme, o maior destaque fica para a fantástica sequência da música “Speed Demon”. Fazendo uso da técnica de stop motion aliada à computação gráfica, Michael Jackson se transforma em um coelho que corre pelas ruas sobre uma moto fugindo de autoridades, percorrendo paisagens visualmente impressionantes. Impossível não se deixar levar pelo carisma dos personagens de massinha dançando ao estilo de Jackson.

Então, após os números musicais, lá pelas tantas finalmente começa a trama propriamente dita. O enredo é simples: Michael Jackson intervém para salvar as crianças das garras de um malvado vilão que quer dominar o mundo. O vilão é interpretado pelo único ator do filme, o brilhante Joe Pesci e sua inconfundível voz. Convém lembrar que o roteiro foi escrito pelo próprio Michael Jackson – o que de cara já explica muita coisa.

Com relação a esta parte de dramaturgia do filme, é bom ressaltar alguns aspectos. Tudo é inegavelmente muitíssimo bem filmado e dirigido, com primorosa direção de arte e figurino caprichado, apesar da fragilidade da história. O resultado deste bom acabamento cinematográfico está na beleza de certos planos que colocam o personagem de Michael na contraluz – em que apenas sua silhueta aparece em negro destacando o perfil de seus movimentos. Esse tipo de recurso estético, que faz uso dos movimentos da sombra do artista, permeou toda a carreira de Michael, seja nos shows, seja na gigantesca maioria de seus videoclipes, de “Rock with You” (do álbum “Off the Wall”, de 1978) a “In the Closet” (do álbum "Dangerous", de 1991, belo videoclipe com Naomi Campbell).

Também merece destaque o número de “Smooth Criminal”, o principal do filme. Descaradamente inspirada no final do filme Bandwagon, ou A Roda da Fortuna, de Vincente Minnelli, traz um personagem principal de terno branco q faz com que os demais, de trajes escuros, curvem-se diante de sua dança - tudo isso em um clima altamente gângster e noir. Uma mise-en-scène de dança incrível, retratada com uma câmera que percorre o cenário fazendo tomadas de ângulos tremendamente inusitados, remetendo até aos melhores trabalhos do cineasta-coreógrafo da era clássica de Hollywood, o lendário Busby Berkeley (que dirigiu inclusive Carmen Miranda, em Entre a Loira e a Morena), uma reconhecida influência ao longo da produção audiovisual de Michael.

Mas, se apresentam tramas tão banais, qual é a verdadeira contribuição dos filmes feitos para os artistas? E, se são fundamentalmente profissionais do ramo da música, que ganho tangível é este atingido com o cinema? A resposta não é simples. Primeiro, apenas uma pequeníssima parcela de artistas consegue viabilizar um filme que gire em torno de si - somente alguém muito popular para tornar seguro financeiramente um projeto audacioso, uma vez que cinema é um negócio muito caro. Os maiores exemplos são Beatles, Elvis Presley e Michael Jackson, não por mera coincidência, os artistas que mais venderam discos na história da música, os únicos a ultrapassarem a marca de 1 bilhão de cópias vendidas. Obviamente, não foram os únicos, Madonna também tem os seus, até mesmo Spice Girls e Britney Spears – porém não confundir com os filmes que os artistas simplesmente participam como atores e não são o cerne de tudo.

A principal razão de ser é a solidificação do mito. Um mito, como diria o estudioso no assunto Joseph Campbell, não nasce pronto, ele é construído por meio da persuasão das linguagens artísticas. E nenhuma mídia tem sido mais poderosa e mais “mítica” para a construção de personalidades que o cinema. Vejamos o caso de Elvis, o rei do rock: predominantemente nos seus filmes, o herói está sempre sendo disputado à tapa por centenas de mulheres, sendo adorado por todos, uma galã irresistível, uma persona rockeira e rebelde intocável. No caso dos Beatles, em especial em Os Reis do Iê-Iê-Iê: os jovens garotos cheios de ironia, fanfarrice e bom-humor, correndo das centenas de milhares de fãs aos prantos. Neste caso, como afirmaria depois o produtor musical deles, George Martin, a construção das personalidades foi além da realidade: no filme, John é rebelde; Paul, o romântico; George, o que não está nem aí pra fama; e Ringo é o engraçado, o patético. Como afirma Martin, isto foi coisa concebida no roteiro, não condizia com a verdade. Mas não é exatamente assim que os Beatles são vistos até hoje?

E no caso de Moonwalker? Em um determinado momento, contando com a ajuda dos céus, dos Deuses, e até de um cometa, Michael Jackson sofre uma mutação sobrehumana: transforma-se num robô gigantesco. Sem esquecer do já mencionado momento em que ele se transforma em um coelho. Repare num denominador comum nas obras de Michael Jackson. No clipe de “Thriller”, vira um lobisomem. No clipe de “Black or White”, vira uma pantera. No clipe de “Ghosts”, vira um monstro cadavérico.  No clipe de “Remember the Time”, retorna ao pó! Isto para ficar em poucos exemplos da mítica de Michael Jackson. Somando-se a sua aparência mutante na vida real, a sua mudança de cor, suas roupas, sua dança única e sobrehumana e ao seu inventivo universo imagético e sonoro, suas obras parecem tornar aceitável algo que é gritante para uma pessoa comum.  Ainda que seja inegável deixar de reconhecer o grande artista que foi, fica a certeza de que Michael não queria e nem era visto mais como um humano, simplesmente. É claro que há o lado do entretenimento em tudo isso, mas não há como deixar de notar que Michael queria ser algo mais, queria legitimar sua posição de rei, tal como reis e rainhas fizeram ao longo da história com suas jóias, coroas e adornos. Foi com seus clipes e com Moonwalker que Michael Jackson se tornou um mito.

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