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Críticas

Cineplayers

Depois das trevas, a luz: a culpa como protagonista no cinema de Reygadas.

7,5

Cinema como banco de imagens dos sonhos e da memória, esse parece ser o processo de Reygadas em seu filme irregular, ainda que belo. Na primeira cena de Post Tenebras Lux (idem, 2012), mergulhamos no angustiante sonho da pequena Rut em campo com vacas. Logo em seguida, vemos uma casa durante a noite em que enquanto as pessoas dormem, o diabo (uma estranha figura iluminada de vermelho) faz sua incursão com uma caixa de ferramentas – presença que só é percebida por um garotinho. Por fim, temos o amanhecer do pequeno núcleo familiar formado pelo casal Juan e Natalia e seus filhos Rut e Eleazar, com seus micros problemas cotidianos.

Essas três imagens, que poderíamos traduzir como sonho, lembrança e vida, sintetizam a narrativa do filme – sem que saibamos ao certo em qual registro estamos e como este se relaciona com o todo. Pois aquilo que poderíamos classificar como realidade, que se afastaria do sonho ou da lembrança distorcida, pode ser filmado com toques de surrealismo – basta pensar no homem que arranca a própria cabeça com as mãos. Assim como aquilo que está no terreno do sonho pode ser filmado como cotidiano/comum – nada de mais banal do que a cena em que o diabo passeia pela casa adormecida.

Assim, aos poucos, entramos em um filme que procura não ter limites – opção que se faz perceber também na escolha de fotografia do filme, que deforma as bordas da tela com um efeito fluo, centralizando o conteúdo do meio das cenas. Os limites também não existem entre quem sonha, lembra ou vive – é Juan? Seus filhos? Sua esposa? O ex funcionário, El Siete? Ambiguidade que Reygadas tenta levar até o fim da trama, mesmo que aos poucos o enredo vá se desenhando, ainda que com contornos esfumaçados.

Nesse sentido, o atentado que Juan sofre durante uma tentativa de assalto a sua casa é uma peça fundamental de entendimento da narrativa. Esse acontecimento é o que evidencia a culpabilidade que está implícita em todo filme: de classe (Juan e sua família são mais ricos que todos os vizinhos e os funcionários de seu sítio), de raça (são os únicos mexicanos brancos daquela região), de sexo (a relação complicada do casal Natalia e Juan, que subentende uma frustração da esposa). Assim, percebemos que é o sentimento de culpa é o que mobiliza a armação das cenas do filme. É a culpa quem mobiliza o banco de imagens – é do ponto de vista desse sentimento que conhecemos a história. E que seu desfecho, por aberto que se mantenha, não deixa de ter um elemento moralizante.

Nesse ponto, o projeto estético do diretor desmorona no que ele tem de mais potente, pois a plasticidade e a estrutura narrativa não conseguem escapar de uma moralização ética. Após as trevas é sumariamente necessário que se venha a luz, após a culpa a redenção (ainda que tudo se embaralhe e seja preciso remontar os fragmentos). Nessa lógica, não há autonomia ou livre arbítrio das imagens: cada cena (lembrança, sonho ou vida) não pode existir por si, mas para justificar uma outra (que virá ou já veio). Dentro dessa prisão, os personagens do filme, por naturalista que seja sua interpretação (sobretudo a das crianças, filhos de fato do diretor Reygadas), não passam de marionetes.

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