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Ancine apresenta dados sobre a desigualdade na produção cinematográfica brasileira

Foto: Ancine/Divulgação

A Agência Nacional do Cinema (Ancine) promoveu nesta quinta-feira (25) uma apresentação de dados inéditos sobre Diversidade de Gênero e Raça no Brasil, divulgando informações representativas sobre o cinema nacional no que tange a questões de gênero e raça. A ação visou buscar o empoderamento e uma indústria menos desigual.

Segundo o estudo, a cada quatro filmes lançados no Brasil em 2016, três foram dirigidos por homens brancos, sendo que nenhum deles teve uma mulher negra como diretora. Foram analisados, no total, 142 longas lançados naquele ano, nos quais trabalharam mais de 1.300 pessoas. Homens brancos dirigiram 75,4% dos filmes, enquanto mulheres brancas comandaram 19,7%. O total de 2,1% restantes na equação dizem respeito a homens negros. 

O desequilíbrio se repete nas profissões de roteirista e ator/atriz. Homens brancos foram responsáveis por 59,9% dos textos escritos, e co-assinaram com mulheres 16,2%, e com homens negros outros 3,5%. Nas atuações, dos 827 atores empregados nestes longas, 491 eram homens e 335 mulheres - deste total, 81,7% eram brancos e brancas. 

O levantamento foi apresentado em evento promovido no clássico cinema de rua Odeon, na Cinelândia - Rio de Janeiro, os presentes reunira-se na sala principal de exibição para ouvir pronunciamentos de diretores e equipe da ANCINE sobre o tema do estudo. Atores, diretores, roteiristas, produtores, professores e demais profissionais da área estiveram entre o público presente. 

O evento contou ainda com a presença do Secretário do Audiovisual João Batista da Silva, enviado como representante do Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, que reiterou o empenho em promover a igualdade no cinema. Desde 2012, foram lançados 6 editais para diretoras mulheres, diretores negros e para longas-metragens de baixo orçamento. Reconheceu, porém, que há lacunas e que as ações visam, em parceria com a Ancine, "reparar uma dívida histórica". 

A idealização do projeto partiu de Luana Rufino, da Superintendência de Análise de Mercado, que agradeceu a Coordenação de Monitoramento de Cinema, Vídeo Doméstico e Vídeo por Demanda. Seus representes, Eloísa Machado e Gledson Mercês, também reconheceram que, apesar do assunto visibilidade estar em evidência, segundo um levantamento recente no Seminário Internacional de Mulheres no Audiovisual, só 13% das grandes bilheterias mundiais desde 1995 haviam sido dirigidas por mulheres - nenhuma delas negra.

A promessa é que o estudo, realizado pela primeira vez com recorte de raça, seja realizado de maneira anual, de forma a promover um panorama histórico ano a ano. 

Foram analisados os 142 filmes nacionais lançados comercialmente em 2016, segundo o SADIS - Sistema de Acompanhamento de Distribuição das Salas de Exibição. Várias categorias de profissionais cinematográficos foram analisados, segundo as classificações de raça e gênero do IBGE, com cerca de 1326 profissionais da área sendo levantados. Homens brancos ainda representam a maioria absoluta, com a maior parte dos longas lançados sendo longas de ficção produzidos no Sudeste. Nenhum filme da região Norte apareceu na pesquisa.

Dados preocupam

Alguns números chegam a ser alarmantes: das obras incentivadas pelo governo, 100% dos diretores são brancos. A estimativa, porém, denota que a partir do momento que negros ocupam os cargos, a probabilidade de que trabalhem com outros profissionais negros aumenta.

Respondendo a perguntas sobre o que fazer para diminuir os números tão díspares, a Ancine anunciou que uma Comissão de Gênero e Raça será criada para analisar os dados levantados e tomar medidas efetivas contra esse contraste tão explícito.

Editais como o de Pernambuco e o Carmen Santos incluem cotas e indutores para negros e mulheres, com as ações afirmativas nesse sentido sendo tomadas a partir dos números obtidos.

Profissionais presentes da plateia cobraram, como o canal "Tá Bom Pra Você" dos atores Érico Brás, Kênia Lima e Gabriela Dias, que os números já influenciam na ação da próxima gestão, em 2019, e que a maior parte da população negra paga seus impostos para não se verem representados nas telas de cinema.

Os critérios de seleção também foram criticados, com a plateia questionando a falta de representatividade nos filmes que são aprovados e financiados. As experiências relatadas da plateia contaram a busca por meios de alternativas, como a experiência do canal supracitado que teve de interromper suas atividades.

O ineditismo do trabalho foi reconhecido, porém, com os números servindo como evidências, apesar da dificuldade de diálogo também ser ressaltada, criticando a maioria ou a unanimidade de homens e/ou brancos nas comissões de escolha dos incentivos.

O secretário de audiovisual declarou que o Conselho Nacional de Cinema e o Ministério Da Cultura irão se reunir para discutir os números levantados. Anunciaram também a elaboração de um grande programa de fomento nesse sentido, lembrando a importância de trabalhar a base com os programas educacionais para que as demandas sejam mudadas, declarando ter feito várias parcerias com a Secretaria de Mulheres e outras organizações.

Presente na plateia, o diretor Joel Zito, famoso pelo documentário A Negação do Brasil, sobre a pouca representatividade negra nas telenovelas, e ganhador de oito prêmios no festival de Gramado com seu primeiro longa de ficção As Filhas do Vento (2004), endossou a indignação de outras perguntas, lembrando que fez seu último longa de ficção há mais de dez e que mesmo reconhecido no cenário há cinco anos não consegue viabilizar dois novos projetos, já tendo tendo mais três roteiros prontos. Saudando a iniciativa, também aproveitou para declarar "inadmissível" que a população branca, faixa menor da população, fique com praticamente todos os recursos pagos universalmente pela população brasileira.

Como caminho mais rápido, sugeriu além dos indutores regionais também os de gênero e raça. Lembrando que quando participou dos editais de longas-metragens de baixo orçamento, contrapôs a ideia de que esse tipo de mercado ainda tem que ser formado, já que existem muitas iniciativas individuais já sendo feitos nesse sentido. Criticou, também, a ausência do Ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão e do presidente da Ancine, Christian de Castro, apesar de ressaltar o "momento histórico" representado pela pesquisa.

Veja o que pensam profissionais do mercado cinematográfico sobre o assunto

Durante o evento, conversamos com profissionais do mercado cinematográficos sobre o diagnóstico apresentado pela Ancine. Confira abaixo o que pensam alguns destes profissionais:

Gledson Mercês - Coordenador 

Cineplayers - Qual você acha que é a importância do levantamento desses dados para você e no que você acha que ele pode impactar na indústria de cinema do Brasil? 

Gledson - Esse estudo é super importante - é o primeiro passo, um diagnóstico oficial do que a gente conhece, do que está exposto: que há pouco diversidade no audiovisual brasileiro, no cinema sobretudo. E uma iniciativa do governo mostrar esses números e com isso ele mostra uma abertura, um canal de diálogo, para que ações efetivas sejam cobradas. A gente sempre tem um passo a passo, no qual primeiro a gente faz o diagnóstico e depois tomamos ações. Esse foi um primeiro passo. Tivemos aqui a presença de vários atores, diretores, produtores, entidades que tratam das causas das mulheres e maiorias excluídas. Foi aberto pra eles, para que eles como sociedade estejam atentos e venham cobrando isso do governo e nós como governo assumirmos esse papel e esse compromisso de mudar essa realidade.

Cineplayers - Como você mencionou, houve essa grande presença de profissionais da área. O que você achou das perguntas que foram trazidas até vocês?

Gledson - As perguntas foram pertinentes - algumas mais exaltadas, mas a gente entende a revolta das pessoas: porque é um problema histórico, um problema que já vem se alongando por muitos anos e que não é fácil de ser resolvido, então as pessoas estão de fato indignadas. As pessoas que perguntaram são pessoas que estão no meio e foram felizes em suas colocações nos quesitos que tocaram. Ficou então esse canal aberto para que o governo tome medidas a partir das colocações deles.

Érico Brás - Ator (Ó Paí Ó, Tapas e Beijos, A Lei do Amor, Tá no Ar)

Cineplayers - Como você ficou sabendo do evento? Qual a importância que você acha que os números levantados pela ANCINE tem para o nosso cinema?

Érico - Fiquei sabendo direto pela Ancine. O próprio Gledson, que é um dos responsáveis pela pesquisa me contactou. Eu tenho uma produtora, a Cabra Produções, e fez o convite para mim e Kênia Maria, que é atriz e sócia da empresa. Os dados são de extrema importância mas também são dados que também não são novidades. É óbvio que eu compreendo e aceito de se fazer isso periodicamente, até mesmo para a gente saber como está atualmente isso e saiba que existe um déficit, que existe um desequilíbrio há muito tempo. Mas por outro lado eu acho que isso não pode vir descolado de uma ação efetiva. Isso não pode vir descolado de atitudes que realmente mudem as estatísticas. E quando eu digo isso, eu digo isso porque do auge dos meus 38 anos, 30 anos de arte, fazendo cinema e televisão, eu vejo essas queixas, essas brigas, essa demanda e a gente tendo que passar as manhãs, dias, em conferências, debates e discutindo, entra gestão, sai gestão, entra governo, presidente, ministro e as pessoas não conseguem resolver. Porque a gente não consegue sequer tocar no assunto principal que é dinheiro. A gente tá falando de investimento, a gente tá falando de dinheiro público no sentido pleno da palavra: dinheiro. Porque ele que é a força da realização dos projetos. Quando a gente entra no engodo de dizer de que não existem produtores negros, que não existem mulheres, isso é mentira. Isso é passatempo - não é nem passatempo, isso é o gasta-tempo. É uma jogada para a gente parar nossa luta e dizer "ah, realmente existe ou não". Gente, essa pergunta eu nem respondo, porque é fato que existe cineastas, roteiristas, diretores, atores, dos quatro cantos do Brasil com capacidade de fazer o cinema brasileiro ter uma outra cor, uma outra cara, eu estou falando de diversidade e equidade de gênero. É só isso. Vale a pena ter esse tipo de evento, mas a gente precisa que a pessoa que divide o dinheiro, que assina no final das contas o projeto, que bate o martelo dizendo o projeto que vai ser realizado, esteja presente, para não aconteça o que aconteceu por exemplo esse ano. A gente tem uma gama de filmes brasileiros, a maioria produzido por cineastas brancos, homens e mulheres, e são filmes que não representam, com licença da palavra, a realidade brasileira, não contam histórias brasileiras. São filmes completamente subjetivos e que não nos interessa. Então vale a pena ter eventos como esse e espero que tenhamos mais.

Cineplayers - Você já esteve em vários destaques do cinema e televisão. E mesmo para você que já é uma pessoa que está inserida e tem certa experiência no mercado, ainda continua difícil conseguir um espaço maior?

Érico - Olha só, eu acho que essa inserção no mercado ela tem que ser continuada. Eu estou num momento que assim, eu tou inserido. Eu trabalho no televisão, fiz algumas coisas de cinema. Mas isso precisa ter uma continuação. Eu tenho produtos. Eu tenho projetos. Eu não posso ser sozinho, eu preciso ser porta-voz de um monte de gente mas também inserir outros porta-vozes. A gente tem um buraco enorme na presença de mulheres negras. A gente precisa ter mulheres negras ocupando esses lugares. Eu do ponto do "privilegiado", de  estar trabalhando e fazendo, vejo essa necessidade da gente reparar essas lacunas. Tudo isso vem com novos trabalhos, novas obras, novas ideias. É isso.

Joel Zito Araújo - Diretor (A Negação do Brasil, As Filhas do Vento, Memórias de Classe, Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado)

Cineplayers - Qual seria a importância dos números levantados pela ANCINE divulgados hoje para o senhor?

Joel Zito Araújo - Eu acho que esse estudo dessa Superintendência é histórico. Eram quem melhor tinham os dados para chegar às conclusões que chegaram. As conclusões, para mim, que fiz A Negação do Brasil, já venho estudando isso, já conhecia, não são novidades. Portanto, eu fico esperançoso que essa profunda desiguldade constatada por esse estudo - 54,9% da população está representada em 2% no uso dos recursos - isso é de um desigualdade, acho que nenhum segmento da sociedade brasileira em que a desiguldade racial seja tão profunda. O setor audiovisual do Brasil tem que tomar tento, tem que estar consciente disso. Porque nós no setor audiovisual temos que manter uma desigualdade tão profunda? Então esse é o primeiro passo. O segundo passo é que eu acho que a ANCINE, que é um grande indutor de desenvolvimento do cinema nacional. Medidas tomadas pela ANCINE, diante do Fundo Setorial, diante dos recursos do CODECINE, eu acho que ela pode impactar toda a cadeia do segmento audiovisual, inclusive as iniciativas privadas. Eu estou propondo que essa experiência que a ANCINE já teve de correção de desigualdade de outros segmentos - especialmente, a desigualdade regional, criando um indutor regional, criando uma cota para as regiões, diante de critério, diante de uma nota de corte, não uma cota aberta. O que eu quero dizer é que a ANCINE já tem experiência para corrigir esse aspecto. E por fim o que eu gostaria de dizer é que o dia que a ANCINE fizer isso, o que eu espero que seja rapidíssimo, seguramente essa realidade vai mudar. Porque um diretor branco que foi comprovado aqui que ele não está preocupado com a inserção de um ator negro ou atriz negra, no momento que ele for disputar um recurso no fundo setorial e souber que as notas de corte dele vão aumentar de pontuação na medida que ele demonstra estar preocupado em corrigir essa desigualdade, seguramente ele vai aumentar o número de atores e atrizes negros, entendeu? Seguramente, ele vai aumentar o número de profissionais negros na equipe, seguramente ele também vai querer ter em sua equipe um roteirista negro, entendeu? À medida que a ANCINE criar um indutor de raça, ele vai mudar rapidamente e profundamente todo o mercado. Ele vai incentivar o jovem branco, que é o jovem privilegiado na história do cinema brasileiro a dizer: "Não, eu tenho que fazer isso". Eu acho ótimo que ele pra obter vantagens ele passe a desenvolver o hábito de incluir profissionais negros. E é da quantidade que vem a qualidade. Daqui a pouco nós vamos ter um Denzel Washington, um Steve McQueen, nós vamos ter em todo o segmento a possibilidade de incentivar profissionais e desses profissionais nascer os ultraprofissionais. Nós vamos ter a possibilidade de ter mais Lázaro Ramos. Por que eu cito ele? À medida que incentiva esse profissional que vai de encontro à real população brasileira, o mercado ganha. As pessoas colocaram o Lázaro Ramos no seu filme porque ele dá público. Ele dá dinheiro. Então na medida que esses indutores de raça façam com que cada profissional que trabalham com cinema tenham essa preocupação, vão estar renovando essa cadeia e vai estar alimentando ela daquilo que ela está interessada, que é ganhar dinheiro. 

Cineplayers - Inclusive, o senhor fez um dos filmes fundamentais para pensar nisso, A Negação do Brasil (2000), sobre a representatividade negra na teledramaturgia. Desde então o senhor já sentiu alguma mudança pequena ou grande?

Joel Zito - Pequena. Uma mudança pequena. Eu acho que isso aqui é parte dessa mudança. Eu sinto muito mais a sociedade brasileira se preparando para mudar do que a mudança real. Eu faço parte desses 2%, não do ano passado. Mas se essa estatística fosse uma estatística dos anos 90, possivelmente o número de homens negros - pretos e pardos - estaria junto dos 0% das mulheres negras. Eu faço parte daquela pequena minoria que conseguiu entrar no mercado. Então minha sensação é essa: estamos dando passos para preparar a mudança, mas mudança real ainda aconteceu muito pouco.

Comentários (1)

Alexandre Koball | sexta-feira, 26 de Janeiro de 2018 - 12:03

Realmente não faz sentido em um país com maioria negra ter tão pouca representatividade. Essa mudança é gradual, e infelizmente não vamos poder contar com o desgoverno.

Imagino que haja um grande mercado aí, pronto para ser explorado, só esperando pessoas com um pouco de ousadia para entrar (afinal, o medo do risco é normal). Alguns filmes comerciais americanos já provaram isso.

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