As pessoas que leram O Senhor dos Anéis, O Hobbit, O Silmarillion e outras obras de Mister Tolkien anos antes da produção dos filmes já se mantinham unidas por um contrato não manifesto, mesmo a longas distâncias, em relação a toda a história. Eram curiosidades e estudos sobre a cultura nórdica, celta, sobre os magos da Idade Média, manifestações esotéricas, livros, música popular, enfim, uma série de referências culturais que faziam os fãs de Tolkien tentar entender o que significava todo aquele enredo disposto nos livros. Com o passar dos anos tudo o que se referisse àquela mitologia era motivo de muitas conversas, divagações, teorias, insinuações, discussões e críticas as mais diversas. Uma legião de amantes dos contos da Terra Média havia sido criada.
A simples menção da produção do filme das histórias do poderoso anel fez brilhar olhos e suspiros foram sentidos em todas as partes do mundo. Pela primeira vez a imaginação daria lugar à visão do que era aquele cenário. Então, quando saíram os filmes da trilogia do Senhor dos Anéis, os fãs se emocionaram e os iniciados, aqueles que nunca leram os livros e sequer sabiam do que se tratava a história, foram cativados. Uma nova cultura foi criada e um jeito diferente de ver filmes de fantasia e aventuras foi estabelecido.
O Senhor dos Anéis foi sacramentado como a nova mitologia dos tempos atuais e que agora era vista nos cinemas.
A história do Hobbit, ou a história dos personagens familiares mais próximos das pessoas comuns, contudo, precisava ser mais bem explorada. Afinal, quem eram aquelas criaturas irresistíveis, aventureiras, heróicas, determinadas e, ao mesmo tempo, falíveis como qualquer um de nós? Esse é o ponto que faz a diferença entre a trilogia do Senhor dos Anéis e O Hobbit, a proximidade. Por mais que a história de Bilbo seja fantasiosa, diferente, é claro, de um Aragorn, guerreiro misterioso e implacável, de um Legolas, elfo resoluto e imbatível, a disposição dos hobbits se parece com a dos mortais comuns, que criam soluções para escapar dos problemas da vida. Foi isso que Tolkien retratou e foi o que Peter Jackson conseguiu captar nesta produção, com elementos de maior heroísmo para o personagem.
Não há como negar: Jackson é um Tolkien das telas. Sua fantasia se assemelha a do lendário escritor inglês. Enquanto Tolkien bebe das lendas nórdicas e germânicas para criar sua história, Jackson elabora seu universo baseado na própria mitologia tolkieana para fazer seus filmes, sem perder detalhes e agregando outros sem parecer pretensioso ou arrogante.
O filme do Hobbit começa exatamente a mostrar que ele, Jackson, não viria para brincadeiras. Ele não iria montar um enredo primariamente copiado de Tolkien, mas ia contar a sua história usando os argumentos do escritor. A história do personagem que morava numa toca no Condado teria mais amarras, mais agregados, mais envolvimentos do que uma simples aventura infantil, demonstrada pela junção entre a história fabulosa do Senhor dos Anéis, como se Frodo fosse o personagem mais elementar de toda a história, e um Bilbo amadurecido pelas experiências vividas. Teria que valer a pena sair daquele lugar e Bilbo-Jackson precisavam deixar isso claro. E aí surge um bate-papo corriqueiro, caseiro, quase cômico entre o mago mais espetacular criado pelo cinema e alguém sem competências aparentes. Bilbo vira um vizinho qualquer, um cunhado de ocasião, aquela pessoa que se vê nas ruas e não se dá nada por ela. Nós, os mortais comuns. Bilbo éramos nós. E o mesmo Bilbo que se torna um herói no decorrer da trama.
O surgimento dos anões, tal como na história escrita, ganha proporções fabulosas com Jackson. Diferente do que se diz, cada anão tem a sua importância na apresentação, sim. Cada um tem voz, rosto, entonação, personalidade e uma história de vida. Mesmo que suas participações sejam meras figurações em diversos momentos, ou uma forma de compor um grupo, eles representam, têm estilo, sabe-se que cada um deles é diferente uns dos outros.
Mas Jackson corre um risco que talvez Tolkien não se incomodaria: como transformar um singelo conto infantil, com seu andamento linear e sem pressa, em um épico capaz de surpreender nas telonas? Talvez seja nesse momento, nas primeiras partes da história, que tenha faltado um pouco de Tolkien a Jackson, o arrebatamento.
Não é no dialogo entre os magos e elfos em Valfenda, com uma participação magnífica de Galadriel, a atriz e a personagem, que tenhamos fixado O Hobbit na memória, como foi na passagem de outros personagens no mesmo lugar em A Sociedade do Anel. Lá, o lugar era sagrado. Aqui, tornou-se um belo repouso, uma espécie de spa onde se poderia passar umas férias. Não, não foram estas cenas, ainda que belas e majestosas, que nos prendeu o interesse pelo enredo.
E é bem provável que tenha sido por isso que ele, o diretor, foi obrigado a chamar outros argumentos do universo do escritor para fazer a história ser filmada como uma aventura que ela é. Andar simplesmente numa trilha até chegar ao destino final, enfrentando alguns dissabores e percalços pelo caminho, não era o suficiente. Uma atmosfera de extremo perigo, além do próprio que seria encontrado no dragão Smaug, fazia-se necessária. Era precisa travar o caminho. O Necromanter, então, criatura semelhante em perigo e suspense a um Sauron em O Senhor dos Anéis, dividiria o terror na história. E nada melhor que uma pessoa simples e curiosa, um mago “periférico” para descrever esse perigo. Pronto! Estava criado o arrebatamento. Daí por diante era só variar no mesmo tema da trilogia passada. E que variação!
As batalhas dos gigantes de pedra são de tirar o fôlego. O confronto com os trolls, uma tragicomédia curiosa, e as lutas na imensa caverna dos orcs são das melhores cenas deste filme. Aliás, a correria imposta pela luta entre os anões, Gandalf e os orcs nas estreitas pontes por toda a caverna lembra bastante as aventuras de Indiana Jones em seus momentos máximos. Cenas fabulosas, admiráveis, esplêndidas e muito bem colocadas no enredo, mais bem descritas que na história do próprio livro. Confesso que em algum momento fiquei tonto. Os 48 fps me colocaram de cabeça para baixo.
E aí vem o instante que talvez fique marcado para sempre na história do cinema: as advinhas entre Golum e Bilbo na caverna. Simplesmente fabuloso. Tolkien, em algum lugar, assinou embaixo.
A trilha sonora, nesse aspecto, torna-se um personagem a parte, dando o tom da encenação em todo instante e colaborando para manter a respiração de cada espectador num compasso disforme.
O que marca maniqueisticamente este filme é a presença do vilão Azog. Os lados para o qual se torce, aliás, estão muito bem delineados. Azog foi colocado ali exatamente para que o bem e o mal batessem seu ponto numa aventura como esta. Ele define a personalidade do próprio anão Thorin. É o confronto do príncipe com seu próprio passado, com suas derrotas e com a busca de suas conquistas. É preciso enfrentar com todas as suas forças esta dificuldade, como forma de purificar seu destino. E, de repente, de onde menos se espera, Bilbo assume este papel. Jackson dá a ele a permissão de ser o protagonista na própria batalha, de ser o guerreiro, o herói implacável. Ninguém esperava por isso. Acredito nem o próprio Bilbo do livro imaginava esta atitude.
Mas Jackson superou Tolkien nas cenas finais, as do aparecimento das águias gigantes e seu vôo ao nascer do sol. Eu paguei o mico de levantar e bater palmas no cinema. Algo magnífico, de encher os olhos.
Se o enredo guardado para os próximos filmes seguir o que está no livro e empregar a superação proposta por Peter Jackson nesta primeira parte, estaremos diante de uma das aventuras mais espetaculares da história do cinema, só perdendo mesmo para O Senhor dos Anéis. E a ansiedade só aumenta daqui por diante.
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