Eu não conhecia essa incrível história da banda Milli Vanilli, formado por um dueto de artistas, e o filme já começa mostrando o único sobrevivente da banda, a ascensão e quedas meteóricas, de modo que não haverá exatamente surpresas. Mas espertamente a edição segura as pontas, e o filme é sobre o caminho a se percorrer até que a fraude da banda, por usar playbacks, seja posta a público, envolvendo produtores, empresários e outros artistas.
Claro que Milli Vanilli não entra sozinho neste rol, artistas como Britney Spears, Justin Bieber, Mariah Carey, tiveram seus momentos de playbacks postos à mídia, mas aqui a proporção foi gigante, e ainda tinha um Grammy atrapalhando o caminho. Os cantores não usaram apenas em apresentações ou de forma pontual: simplesmente todo o disco de estreia fora gravado com vozes de terceiros, e este mesmo disco rendeu-lhes um Grammy por artista Revelação de 1990.
Formado pelos cantores Fabrice Morvan e Rob Pilatus, a ascensão da Milli Vanilli começou em 1988, quando lançaram seu álbum de estreia "Girl You Know It's True". O álbum foi um grande sucesso, impulsionado por singles como "Girl You Know It's True", "Blame It on the Rain" e "Baby Don't Forget My Number". A imagem da banda era caracterizada por sua aparência moderna e danças coreografadas, o que os tornou populares no cenário musical da época. Tinham o apelo da dança e do estilo a seu favor, com suas imagens sendo devidamente exploradas.
A dupla, então, cruza com os produtores Frank Farian e Bernd Dietrich, que contrataram outros cantores para gravar as faixas do álbum que seriam lançados por Milli Vanilli. A questão é: ralmente impressiona que muitos figurões não sabiam disso, ou sabiam e faziam vista grossa?
Em um dos depoimentos, um deles já avisa: o que isso importa? Afinal, na música de massa se está consumindo um produto.
Esse debate é relevante hoje em dia à medida que vivemos a era dos DJs, que lançam singles cheios de efeitos especiais remasterizados, ou mesmo temos a presença da IA fazendo reviver cantores já mortos, como no caso de "Now and then" dos Beatles, lançada em novembro de 2023. Qual o papel, afinal, da autenticidade na arte?
O sociólogo Pierre Bourdieu, em suas reflexões sobre o campo cultural, argumenta que a autenticidade desempenha um papel crucial na legitimação simbólica das obras de arte. Ele sugere que as práticas culturais são marcadas por lutas simbólicas, nas quais os artistas buscam estabelecer a autenticidade de suas expressões como forma de obter reconhecimento social. No entanto, o debate sobre a autenticidade nas obras de arte também se conecta a questões de performance e performatividade. Judith Butler, influente teórica queer, argumenta que a autenticidade é uma construção performativa, onde os artistas, ao se engajarem em práticas artísticas, constantemente negociam e redefinem suas identidades perante seus públicos.
O que Milli Vanilli fazia era isso: performance. Claro que há um limite do "ser autoral", e se aqui o limite fora claramente extrapolado, muitas vezes eles não ficam claros, como no uso de efeitos provocados pelas tecnologias. Walter Benjamin, por exemplo, introduziu o conceito de "aura" para descrever a autenticidade única e a presença que uma obra de arte original possui em comparação com suas reproduções. Ele argumenta que a reprodutibilidade técnica das obras de arte na era moderna diminui a aura, transformando a relação das pessoas com a arte. Se na cultura de massa se tende a perder a "aura", ao dissolver a singularidade do artista, por outro lado a arte é capaz de criar conexões e experiências. Afinal, o que se quer com a arte?
Ao abraçar a ideia de arte como experiência única, os apreciadores de arte e os críticos são incentivados a valorizar a autenticidade, a singularidade e a complexidade que cada obra de arte oferece. Essa perspectiva desafia as formas mais massificadas e reproduzíveis de apreciação artística, destacando a importância de se envolver profundamente com o momento presente e a singularidade de cada encontro com a arte. O caso de Milli Vanilli apenas expõe essa hipocrisia, e se por um lado extrapolam os limites do aceitável, por ouro lado mostra que ainda estamos em processo de construção e em busca do prazer artístico genuíno.
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