Sobre pessoas estranhas e extraordinárias.
Muitos dizem que ninguém dirige musicais como Bob Fosse, na dúvida assista Cabaret. Musical estonteante que ratifica nos seus mínimos detalhes a genialidade de Fosse quando o assunto era histórias musicadas. Defendendo este ponto de vista quero começar então pelo lugar que dá nome ao título. O Cabaré Kit Kat Club situado na Berlim de 1931, que é muito mais do que um simples local, é um personagem quase vivo na trama que evidencia e explana facetas, desejo, encontros, poder, sonhos, romances, glamour e traições de vidas solitárias que procuram uma distração, uma fuga. Dito isso, imagina-se então, um filme melancólico, pessimista que irá levantar uma crítica à sociedade imoral e inescrupulosa. Muito pelo contrário, Bob Fosse está longe de querer ser conceitual ou julgar personagens mas humanizá-los e nos fazer entender como muita das vezes podemos ser ambíguos, indefinidos e não ter conhecimento de si mesmo, ou seja, sobre como podemos ser pessoas estranhas e extraordinárias ao mesmo tempo. Tudo muito lotado de humor, extravagância, leveza e romance.
Um filme musical que se preze, deve, por obrigação, ter bons números musicais. Mas estamos falando de Fosse, certo? Óbvio que os números musicais seriam um espetáculo a parte. No clube, as apresentações musicais tendem a roubar o show quase inteiramente. O diretor simplesmente dá uma aula de como se abre um musical de verdade e como o manter cheio de fôlego até os créditos finais. A frase "bocejar vendo números musicais" não existe quando falamos de Bob Fosse. Isso por que o diretor não se permite ser convencional ou tradicional. Aqui a bizarrice rola solta. E é ai que entra o excêntrico Mestre de Cerimônias interpretado pelo magistral Joey Grey, que venceu o Oscar apenas atuando como um palhaço escandalosamente sorridente em cima dos palcos do Clube Kit Kat. Ele introduz praticamente todas as cenas musicais e conduz as apresentações da casa noturna, até uma luta no ringue cheio de lama fazendo lembrar da selvageria dos romanos, tudo para entreter a platéia. Seus momentos são um show a parte.
Esqueça as sequências fantasiosas que a maioria dos musicais recorrem quando querem introduzir a parte musical na trama. Você deve lembrar daquele filme que do nada os personagens saem de cena, vão para o raio que o partam e cantam aquela canção com um amontoado de coadjuvantes e figurantes, tudo incrivelmente bem coreografado e no seu devido lugar. Claro que existe muitos filmes que fizeram bonito recorrendo a este tradicional procedimento, mas é só pra salientar o modo diferente com que Fosse trabalhava seus musicais. Enfim, toda a parte cantada acontece em cima dos palcos introduzindo cada cena de forma excepcional. Elas nunca começam sem motivo. Todas elas tem sua singularidade e sua importância, quase sempre começando após um ato importante em que o diretor desejava explorar mais a fundo sobre alguma coisa. Um exemplo disso são as letras quase sempre em forma de desabafo, de estudo, como se ele quisesse revelar algo sobre o personagem ou sobre aquilo que se estava discutindo, por isso é muito importante ficar ligado nas letras cantadas e dialogadas. As performances do clube são habilmente utilizado para ilustrar e enfatizar a trama. Isso pode ser facilmente percebido logo no início onde Brian conhece Sally e após uma conversa de primeira instância somos levados ao palco para a maravilhosa performance de abertura de Sally com uma das canções indicadas ao Globo de Ouro, Bye Bye Mein Herr.
Falar de Sally me deixa empolgado. A mulher do sorriso contagiante. Sua persona é perfeitamente esboçada na canção citada acima. Um tanto insensível e ingênua, o tipo de mulher fatal que enlouquece os homens mas que facilmente pode usada como brinquedo. No palco com cintas-ligas e um chapéu coco ainda pode ser sensual e impertinente hoje. Porém, a verdadeira natureza de seu personagem é de fato estudada fora dos palcos. Essa mulher é enlouquecedora. Liza Minnelli, no auge da sua beleza jovial, deu vida à Sally com tanta facilidade e tamanha naturalidade que hipnotizava. Muito a vontade com sua personagem, Minnelli constrói uma Sally vulgar, mas vulnerável, corrompida, mas adorável, alheia, mas solitária, talentosa, mas presa no Kit Kat Club, onde a música nunca pára e a vida é sempre bela. Muito diferente de Brian (Michael York), professor de inglês que chega à Alemanha em busca de emprego e que logo cai em suas graças. Sally passará por uma experiência deliciosa, confusa e cheia de seus altos e baixo.
O desempenho sóbrio de Michael York parece um pouco pálido ao contrário de uma Liza Minelli histriônica e sempre sorridente, mas é tudo parte do show a fim de salientar a diferença essencial entre esses dois estranhos. Quando mais um personagem entra em cena, desejos são libertados e esses, por sua vez, suscitam a essência do próprio eu desses dois personagens, ou quem sabe, três. Maximilian von Heune (Helmut Griem), o barão poderoso e cheio da riqueza, que com uma fácil e rápida investida, ludibria a facilmente corrompível Sally, chega para esquentar essa relação. Sally é gananciosa de um jeito adorável, não transmite maldade ou algum desejo maquiavélico, ela simplesmente gosta de dinheiro e quer aproveitar o melhor de uma vida luxuosa, uma outra performance com a canção também indicada ao Globo de Ouro, Money, Money, é um perfeito ilustrador desta afirmação, que particularmente acho o melhor número dentre tantos outros sensacionais de todo o filme. Mas se de um lado tem a diversão passageira e regada no luxo, no outro tem talvez o que ela mais precisa, o afeto e uma companhia para o que der e vier. Claro que ela não é capaz de escolher um lado, o que se inicia uma relação a três, de muitas descobertas, liberdade e auto conhecimento.
E é agora que vamos falar daquilo que rege a trama em torno dos personagens. Eu acho extremamente singela a forma como Fosse constrói as particularidades de seus personagens. Nada fica muito evidente de forma escancarada. Tudo é muito discreto e instigante. Você quer saber mais sobre os personagens mas Fosse libera pouca elucidação sobre eles, cabendo a nós decifrar olhares, emoções e atitudes instigando a imaginação do seu espectador. Pode parecer que o diretor fica em cima do muro e indeciso sobre seus personagens, mas essa é a verdadeira essência de cada um deles, pessoas indefinidas, indecisas, pessoas que agem por impulso e que simplesmente se dispõe a cada nova oportunidade para se conseguir a tão desejável felicidade e auto conhecimento, só sabemos que esses dois são carentes e desesperados apenas para encontrar alguma felicidade na vida pessoal. A cena em que eles dançam se entreolhando é maravilhosa. Brian está disposto a seguir uma vida com Sally mesmo tendo afirmado sobre sua sexualidade. Acontece que, até ele, se sente atraído pelo barão que depois de se divertir muito, e/ou talvez ter percebido esse sentimento de Brian, ou talvez ter se enjoado da relação, abandona a aventura. Eu prefiro acreditar que ele também pode ter sentido algo por Brian, a cena da despedida no carro me faz acreditar nisso.
Cabaret lida muito com os nazistas chegando ao poder na Alemanha no início dos anos 1930, mesmo que isso se pareça com um tema secundário, o que me incomodou um pouco ao terminar a sessão, queria mais sobre o nazismo ali, mas acho que seria desnecessário. Bob Fosse mostra o básico, apenas pra situar sua trama e não desleixar alguns personagens secundários, como o gigolô Fritz que se apaixona por Natalia, uma judia riquíssima. Inclusive, esses dois coadjuvantes tem uma importância e tanto. Tanto para o humor quanto para a subtrama sobre o nazismo. As cenas deles treinando o inglês com frases descabíveis como "soltar catarro do nariz" a fim de mostrar que conhecem palavras diferentes dentro do vocabulário inglês, são uma delícia a parte. Dentre os temas como nazismo, bissexualidade e imoralidade está também o aborto. Temas muito incomuns a serem discutidos naquela época. E Fosse o faz sem demagogia e sem discurso crítico a fim de polemizar ou formar opiniões.
Elogiar a qualidade técnica dos filmes do Fosse é chover no molhado. Sabemos que editar um musical é extremamente difícil e trabalhoso. Deve-se à montagem de Cabaret todos os elogios, mesmo num palco pequeno em que o espaço não vai muito além dali, Fosse tem uma criatividade absurda para mostrar o certo na hora certa. Confere isso no musical que viria a dirigir anos mais tarde , All That Jazz, os números são espantosamente bem filmados, os atores em perfeita sincronia, e cada câmera ajuda a criar essa bela performance que vemos na tela, o que também reflete na bela fotografia. O clube Kit Kat como um lugar escuro e colorido, totalmente diferente da paisagem pesada e gélida de uma Berlim no início da era nazista que posteriormente viria a ser comandada por Hitler (detalhe que o diretor é tão discreto que a palavra Hitler não é mencionada nenhuma vez). A maquiagem e figurino é outro ponto bastante chamativo. Sally e o MC estão extravagantes.
Bob Fosse trouxe exatamente o que eu espero dos filmes, neste caso, dos musicais. Uma obra-prima atemporal de valor incalculável que ainda hoje serve de inspiração para muitos como Rob Marshall que bebeu muito dessa fonte para a realização do excelente Chicago. O filme termina com os dois em uma plataforma ferroviária, mas pode-se adivinhar que suas experiências em conjunto teriam mudado os dois para sempre. E assim como com todos nós, somos marcados por experiências, algumas pessoas vem e vão, mas a experiência sempre fica.
Sally cantando no final "A Vida é um Cabaré, meu velho amigo" mostra o quão satisfeita ela está com a vida que levara até ali, sem julgá-la, talvez apareça mais alguém para lhe fazer pensar sobre tudo novamente.
"Então, a vida é decepcionante? Esqueça! Aqui, a vida é bela. As meninas são bonitas. Até a orquestra é bonita."
Esse filme te tirou do jejum de textos mesmo!
Escrita claramente apaixonada, mas sem elogios gratuitos e capaz de deixar o leitor com vontade de ver ou rever o filme.
Ficou sensacional. 😁
E bem grande ne? 😏 mas deu pra colocar tudo pra fora haha
Valeu amigo!!
Belissíma crítica para um filme nada menos que sensacional!