No cinema, palavras em geral pouco usadas ganham redefinições e, muitas vezes, são repetidas a esmo. A expressão cult, definitivamente, é uma delas. De origem do latim cultura, ou seja, algo ligado à informação, ao conhecimento, à explicação social (não me dei ao trabalho de recorrer ao dicionário), é destacada para alçar bons e surpreendentes filmes à condição de diferenciados, topo de listas. Para ser cult, não é simples, embora o conceito esteja um tiquinho banalizado. Até porque há distintos modos de se integrar tal lista. Por exemplo: um longa razoável, que passe mensalmente na "Sessão da Tarde", é chamado de cult sem muito medo. Cabe a cada um separar os que o são, de fato, ou que não são.
Em questão, Donnie Darko é um dos filmes da última década ao qual o rótulo não é negado. À primeira vista, pode parecer um terror adolescente, meio sem pé nem cabeça, que visa entreter e confundir com referências ao batido além e visões de seu protagonista durante pouco menos de duas horas. Basta, no entanto, um olhar mais aguçado para chegarmos à conclusão de que não. É o tipo de roteiro que nos faz correr à internet em seguida à caça de outras opiniões acerca do que acabamos de testemunhar. Tudo porque trata-se de um filme pretensioso. Sim, por mais que haja versões contraditórias para o que o fim do longa representa, o trabalho liderado pelo então estreante na telona Richard Kelly mexe em muitas feridas. Viagem no tempo, Deus, puberdade, relacionamentos interpessoais, enfim, vários assuntos sérios, e que são tratados assim, diga-se.
Ocorre que nem sempre eles têm o espaço justo para seu desenvolvimento. Do contrário, teríamos de estar diante de um livro, e não de um filme. O que a suposta esquizofrenia de Donnie (papel central de Jake Gyllenhaal) tem de bizarra, em virtude das formas e situações às quais é submetido, também tem, em dobro, de instigante. À medida em que o filme se adianta, surgem mais e mais elementos. De modo peculiar, o argumento os explica e os encaixa. Fico com esta básica colocação: entramos no mundo deste jovem profundamente, mesmo, e descobrimos, com ele, aonde sua brilhante cabeça vai parar.
Outros elementos, embora secundários neste caso, dão conta do recado, como as atuações e até a trilha sonora, que remete aos anos 80, época que o filme revisita, com o melhor de Tears For Fears e Joy Division. Direção e edição não são as ideais e indicam, em relação à primeira, a pretensão já citada, mas, dentro do contexto, acabam não comprometendo em nada. Sempre bem-vindas, há referências a De Volta Para o Futuro e, veladamente, a Magnólia, de Paul Thomas Anderson, de dois anos antes.
Mascarada pelos eventos, a história tem um quê de dramalhão. Mas sublimemente compreensível. Afinal, Donnie não está satisfeito com o rumo de sua vida, com a hipocrisia adulta, com as pessoas que o cercam e, em breve - ou no passado, ou no futuro, difícil dizer -, perderá alguém importante. Coisas da idade, é verdade. Mas é cinema, não é? Eventualmente, um tem de morrer para um outro sobreviver. Explicar certos detalhes, se foram falhas de engrenagem ou não, só mesmo na cabeça de quem pariu a ideia. Apesar de não gostar do termo "há filmes que não precisam ser compreendidos", concordo que há escolhas para dar um impacto maior (como a do coelhão demoníaco) e que são aceitas dentro de uma visão que prega a originalidade.
Falamos aqui, sobretudo, de uma obra em busca de algo refrescante, diferente, sem medo de errar. O que é extremamente positivo. Um dos maiores males do povo de Hollywood, e todo mundo sabe, é repetir fórmulas, às vezes até com roteiros legais em mãos, para que o resultado não soe "over" e perca-se público (leia-se dinheiro!), crítica e a própria carreira. Porém, dos filmes independentes, dá para esperar a tentativa descrita nos parágrafos acima, o que só comprova a tese de que, quem gosta de cinema, deve procurá-lo nas ruas, longe de shoppings, construções capitalistas e... anti-culturais! Em suma: para conhecer o real cult, o bom, o puro, ainda que imperfeito, é necessário garimpar, pois não tem sido nada fácil. E lá se vão nove anos desse aqui...
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