Desde sempre, o ser humano vive em conflito. Desde sempre mesmo, como mostrado brilhantemente em “2001: Uma Odisseia no Espaço”, quando os primeiros hominídeos começam a brigar entre si, formando os primeiros clãs. Clãs esses que se tornaram os embriões para as primeiras nações e Estados. Através de um contrato social, na visão de Rousseau, cada pessoa abriu mão de parte da sua liberdade em nome de uma entidade superior, com medo justamente desses conflitos, ao invés de tentar aprender com eles. No mundo das artes, estranhamente, um dos filmes que melhor retrata esse estranho fenômeno social é um terror ambientado em ficção científica: “The Thing”, de John Carpenter.
A sinopse parece bem uma ficção do tipo “O Dia em que a Terra Parou”, envolvendo extraterrestres e militarismo, onde o ser alienígena é necessariamente agressivo, reflexo dos tempos de Guerra Fria: um grupo de pesquisadores norte-americanos no Pólo Sul, em pleno inverno antártico, vê um helicóptero norueguês perseguindo um cão, tentando matá-lo, mas acabam fracassando nisso. Mas a falta de comunicação entre as pessoas da duas nacionalidades não deixa claro qual o motivo dessa estranha perseguição.
Nesse comecinho, Carpenter já deixa explícito um primeiro tipo de conflito social: o choque de culturas. Os americanos, assustados com o comportamento dos noruegueses e sem entender o porquê de tudo isso, reagem de maneira agressiva, matando o atirador que perseguia o cão. Interessante notar como o sujeito da arma que executa o norueguês já pode logo ser identificado como o líder daquela equipe, por ser o que possui o artefato letal e por usá-lo como bem entender. Em outras palavras, possui o monopólio da violência.
Mas os americanos descobrem, da pior maneira possível, o motivo daquilo tudo. O cachorro, certeiramente apresentado como um animalzinho agradável nas primeiras cenas, era um ser de outro planeta, que possui a capacidade de mudar de forma quando absorve outro ser vivo. Depois de massacrar a equipe norueguesa, ele passa a persegui-los.
Dentro da lógica do filme, esse monstro é quem potencializa os conflitos. A escolha de uma situação extrema, como uma equipe isolada na Antártica, para cenário desse filme, foi uma bela bola dentro, pois reforça a analogia de que aquela equipe pode ser entendida como uma sociedade, passando por problemas depois que algo estranho, de fora, entra nela, abalando as suas bases. Outro momento que demonstra bem esse estranhamento, misturado a desconhecimento, com relação ao de fora está no fato do protagonista, McReady, se referir ao pessoal da outra base como suecos, mesmo com a identificação norueguesa no helicóptero.
Esse é um filme curioso, observando os trabalhos de John Carpenter. Quatro anos antes, ele fez o espetacular “Halloween”, onde conseguiu inspirar horror sem precisar apelar para sangue e tripas voando, utilizando apenas a presença do assassino e uma trilha sonora marcante para criar tensão. Em “The Thing”, ele surpreende. Em alguns momentos, ele consegue criar tensão apenas com um cobertor se mexendo, ou com uma visão de uma lâmpada acesa em uma janela. Mas, aqui, o diretor simplesmente se rende ao gore. Porém, não são somente entranhas e sangue. A criatividade rola solta com os monstros, todos com uma aparência grotesca e muito original. E todos aqueles modelos são reais, nada de computação gráfica. Até mesmo para os dias de hoje aquelas criaturas impressionam pelo detalhismo.
Outro voto de louvor deve ser dado a Ennio Morricone. Quem conhece os seus trabalhos ao lado de Sergio Leone sabe que as suas trilhas geralmente são presentes em boa parte da duração dos filmes. Mas nesse ela é bem pontual. E isso é um ponto positivo, pois, justamente nessas cenas, a trilha se faz memorável, criando um clima realmente tenso.
Na medida em que o monstro vai dizimando a equipe, os conflitos internos vão ganhando contornos cada vez mais extremos. Quando, finalmente, o capitão não aguenta a pressão e, em uma cena extremamente simbólica, entrega a sua arma. Então a equipe escolhe McReady, o piloto do helicóptero, como novo líder. A primeira coisa que ele faz é empunhar o revólver, e todos ali entendem o seu recado, e diz “De agora em diante, ninguém sai da minha visão!”. Detentor do monopólio da violência, que não aceita que ninguém mais possa lhe fazer uma ameaça (quando um dos membros da equipe tentar pegar uma arma também, McReady contém essa ameaça de maneira enérgica), e pronto para passar por cima de qualquer um para acabar com a ameaça do alienígena, McReady é a perfeita analogia de um ditador totalitário.
Os regimes totalitários surgem quando uma sociedade, imersa em uma crise, não consegue lidar com os conflitos que são frutas desta. Então, em nome de sua própria segurança, elegem alguém, conferindo-o com poderes extraordinários, para trazer a ordem de volta. Foi assim com Julio Cesar, Napoleão, Stalin, Hitler, os militares no Brasil...O medo do inimigo, do conflito, é o bastante para que as pessoas aceitam a liderança algo igualmente ameaçador, mas que esse seu caráter agressivo acaba passando em branco, justamente pela cegueira causada pelo medo.
Em um ambiente em que todos suspeitam de todos, eles conferem a McReady o poder supremo para acabar com os conflitos. Mas eles ignoram a história, o fato de a base norueguesa, que possivelmente também adotou essa postura, estava em cinzas. E nessa perseguição insana para restabelecer a ordem, acaba colocando fogo em tudo. Vale tudo para exterminar o inimigo da sociedade, incluindo acabar com ela.
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