A arte do cinema mostrou seu diferencial logo de cara com a possibilidade de materialização dos sonhos na grande tela. Seriam as artes cênicas no seu estado mais puro, sem as limitações do teatro. Por isso, a ideia foi de criar obras que se afastassem cada vez mais do cotidiano, como, por exemplo, as obras de George Meliés, que abusavam do surrealismo a criar filmes com viagens espaciais e figuras irreais, e nos mil contrates e passagens oníricas do Expressionismo Alemão.
Entretanto, especialmente a partir do final dos anos 40, foi feita uma revisão desse conceito, através de vários movimentos cinematográficos, como a Nouvelle Vague, na França, e o Neorrealismo Italiano. Esse último é particularmente curioso. A Itália, marcada como vilã após a Segunda Guerra Mundial por ser o berço do fascismo, vivia uma crise, com sua população seriamente desfalcada e com a escassez de mantimentos básicos e de empregos, refletindo em uma piorana qualidade de vida da população. E o cinema foi em busca disso. Falar sobre o cotidiano verdadeiro do cidadão italiano comum, nos seus problemas habituais, para que o espectador pudesse se ver na projeção, se identificar. E uma obra que exemplifica muito bem isso é “Ladrões de Bicicletas”, de Antonio de Sica.
O que fisga o espectador logo de cara é justamente o fato dos problemas apresentados em tela serem comuns a todos nós. Não somente na Itália pós-Segunda Guerra Mundial e pós-fascismo, como para qualquer cidadão do século XX e XXI. A simplicidade da sua trama torna essa obra atemporal. O homem pai de família, Antonio Ricci, está desempregado e consegue um trabalho, desde que possua uma bicicleta para executá-lo. Ele é pai de dois filhos, morador dos subúrbios de Roma. Pronto. Esse ponto de partida não possui absolutamente nada de extraordinário. Todos os espectadores podem ver ali algo que já viram com alguém próximo ou até como ele mesmo! Esse é o grande barato do filme e do movimento artístico que ele representa.
Graças à essa trivialidade dos personagens o espectador consegue ter uma empatia quase instantânea com eles. No momento em que Antonio trabalha pela primeira vez, é impossível não sentir uma satisfação com o seu sucesso. Entretanto, aí vem em mente o título do filme, e o espectador passa a ficar apreensível, temendo pelo pior. Em um momento, Antonio pede à uma criança na rua que olhe a sua bicicleta, e quem assiste ao filme já começa a se lamentar pelo pobre coitado nesse momento, mesmo que não seja ali que de fato o furto ocorra.
Então, finalmente, o seu instrumento de trabalho lhe é subtraído. E o espectador torce para que ele consiga alcançá-lo. Torce para que o ladrão bata em um carro ou em um poste, mesmo imaginando que isso não iria ocorrer. E ele foge. Antonio, frustrado, golpeia um balde de metal, como qualquer ser humano faria em uma situação daquela. Porém, deve-se fazer uma pergunta aqui: qual o sentido desse ato? O que o pobre balde tem com tudo isso? Ocorre que Antonio não é um detetive noir super frio ou racional ou um heroico legionário clássico. É uma pessoa normal, com seus defeitos e limitações. Por mais irracional que seja esse ato, ele decorre de um acesso de raiva devido à uma situação frustrante. É errado? Sim, não se deve levar por uma fúria momentânea dessa forma. Mas é completamente humano.
É interessante notar que, em todo o momento, Antonio é seguido pelo seu filho Bruno. O menino é como uma sombra, quase não desgrudando do pai. E ele possui um significado interessante dentro do simbolismo do filme. Ele é uma representação de uma pureza infantil que ainda está dentro de Antonio, servindo como um freio moral. Essa analogia fará todo sentido ao final do filme.
Em um momento, Antonio Ricci perde as esperanças, e senta na calçada ao lado do seu filho, próximo do estádio de futebol onde está ocorrendo uma partida. Esse cenário não foi escolhido por De Sica por acaso, pois uma partida de futebol é uma ótima representação dos sentimentos intensos e conflitantes que estão percorrendo a cabeça de Antonio naquele momento. Então, ele pede que seu filho vá encontrá-lo em outro local. Assim, ele se livra do seu freio moral para furtar uma bicicleta, cometendo o mesmo delito que foi vítima e que serviu de motivo para toda essa odisseia.
Porém, ele não é bem-sucedido nesse crime, acabando por ser detido, na frente do filho (que não saiu do lugar, assim como a consciência de quem pratica algo que sabe que é condenável). O dono da bicicleta, ao ver toda a situação, resolve perdoar Antonio, que sai dali, calado, ao lado do filho. Aqui De Sica poderia colocar um diálogo forte entre os dois. Porém, ele se limitou a mostrar o encontro do olhar cheio de culpa de Antonio com os olhos lacrimejantes de Bruno, e o aperto de mãos entre pai e filho. É algo trivial, comum? É. Mas conseguiu, na tela, ser mais belo que quaisquer frases de efeito que um diretor mais pretensioso poderia colocar. Fazer algo simples ser belo. Aí está o grande barato do cinema.
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