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Filmografia Comentada - John Carpenter (Parte I)

O boom do novo cinema norte-americano dos anos setenta provocou uma explosão de novas ideias sobre o fazer cinematográfico, com a experimentação exaustiva no mainstream do cinema do que anos antes havia sido postulado na Europa pelas escolas vanguardistas e uma onda revisionista poucas vezes vista que resgatou artesãos de um cinema popular praticado na Antiga Hollywood e que, de quebra, arrancou do cinturão de miséria para a popularidade filmes gráficos e explícitos.

É nesse cenário que surge John Carpenter, conflito vivo da projeção da subjetividade no esquema industrial, por anos no fio da navalha entre ser um “hitmaker” e um independente. Artista que se antena com a estética de sua época sem negar a antiga. Estudioso atento do cinema clássico, Carpenter marca a sua obra pela preferência por câmera estática e movimentos econômicos de quadro. A ação se desenrola através de recorte ao invés de subordinar a câmera. O olho de Carpenter é mestre absoluto em cena, e a misé en scene é mais importante que a descrição de eventos. Influência direta de Howard Hawks, um dos primeiros a assumir que a estilização poderia ser mais interessante que a narrativa, reduzida a conflitos simples, com uma implicada preferência pela dramaticidade individualista do que os contos épicos e mitológicos.

Essa influência chamou atenção para as “set pieces”, cenas destacadas e marcantes, mais elaboradas e dispendiosas, que marcavam transições no filme e que Hitchcock chamava de crescendos – uma pista em mostrar o cineasta não como um narrador, mas antes um maestro. Prova viva dessa linha de pensamento, Carpenter sempre voltou atenção especial para o filme essencialmente cinematográfico, em obras que fabulam sobre dominação e resistência, herança legítima do drama burguês explicitamente acentuada nos gêneros que privilegiam a ação física como horror, crime, ficção científica e aventura. Carpenter foi estudante da USC School of Cinematic Arts e fez boa parte dos seus primeiros curta metragens nessa instituição que formou gerações do cinema norte-americano. Começou com os curtas Captain Voyeur (1969) e The Ressurrection of Bronco Billy (1970), que participou como co-roteirista, montador e autor da trilha sonora, que acabaria rendendo um Oscar de melhor curta-metragem. Ele então abandonaria o curso para junto ao colega de academia Dan O'Bannon e 60 mil dólares dirigir seu primeiro longa-metragem.

 

Dark Star (1974)

Primeiro longa-metragem dirigido por John Carpenter com Dan O'Bannon como roteirista e um dos protagonistas, Dark Star foi vendido com a tagline “A Spaced Out Oddissey” - a odisseia chapada. A dupla fez um filme contracultural com o orçamento paupérrimo de 60 mil dólares transformando o rústico em estética, perturbando com elementos exteriores o cotidiano opressor de uma nave espacial que tem por missão viajar até os confins do universo destruindo planetas considerados “instáveis” para a colonização. O'Bannon anos mais tarde contaria essa história em Alien – O Oitavo Passageiro, fazendo um filme de horror do que era uma comédia de erros. Com a câmera estática assumindo pontos de vista maquinais e observativos e uso ostensivo da profundidade de campo para mostrar o tamanho do estrago que um invasor extraterrestre (uma cômica bola de praia com patas) faz à nave e seus tripulantes, vagando por aqueles corredores retilíneos e estéreis de forma impetuosa e “pastelona”, “Dark Star” faz nós oscilarmos entre ser deslocados por agentes do caos e reprimidos por representantes da ordem: eles nos engolem, mas nós continuamos orgânicos e errôneos, alienígenas à nossa própria criação.

 

Assalto à 13ª DP (1976)

Inesperado sucesso de bilheteria que continua com a obsessão de Carpenter por ameaça, conflito e sobrevivência, Assalto à 13ª DP é sua recontextualização de Onde Começa o Inferno. A trama principal perde toda sua pathos e narra a tentativa de um grupo – policiais, presidiários, secretárias – de resistir contra os avanços de uma gangue que mata de forma indiscriminada todos que aparecem em seu caminho. O espaço fechado e frágil que não resiste a muitas investidas, as poucas chances de sobrevivência e a ameaça crescente de Hawks são o alimento de Carpenter para, ao seu bel-prazer, passear por internas e externas, antagonizar um grupo diversificado, individualizado e humano contra uma ameaça uniforme, que não se explica nem se justifica. Uma trama simples onde a grande elaboração mesmo está na multiplicidade dos pontos de vista, na escalada de violência, as câmeras estáticas desenhando ambientes e armas aos nossos olhos, contrastando silêncio e ruído, inércia e explosão, até a conclusão do filme, onde o tempo torna-se cada vez mais contraído e os espaços tornam-se cada vez mais apertados e escuros. A construção de tensão de Carpenter dizia praticamente adeus à narrativa e clamava por atmosfera, exibindo toda a fúria do novo cinema de gênero, com seus recortes simples, diretos e impactantes. Com filmes como este de Carpenter, a violência urbana assentava o pé de voz no cinema de horror e suspense.

 

Halloween – A Noite do Terror (1978)

Como em Prelúdio Para Matar (Profondo Rosso, 1975), de Dario Argento, e Noite do Terror (Black Christmas, 1974), de Bob Clark, Carpenter inicia seu Halloween fazendo a câmera assumir os olhos do assassino. Ela passeia por uma casa, veste uma máscara, se arma. Passa a procurar pela vítima. Tal ritual de assassinato cometido pelo psicopata Michael Myers irá se repetir por todo o filme de Carpenter. Myers, após passar anos em um hospício, foge e escolhe de maneira aleatória um grupo de babás adolescentes para perseguir e matar. E essa é toda história que há em Halloween, um conto de bicho-papão que Carpenter constrói o clima aos poucos. Myers surge no canto dos nossos olhos, por alguns segundos, some quando viramos para olhar. Apertando cada vez mais os ambientes para onde sua protagonista Laurie Strode pode correr, utiliza a escuridão – medo primário, infantil – para esconder seu assassino silencioso, rápido e resistente à maioria dos ataques, com sua loucura homicida deixando a adolescente e o psicólogo Sam Loomis incrédulos, assustados e, acima disso, sozinhos e enclausurados. Em sua história de horror primordial, Carpenter tem um ritmo lento e quase contemplativo em orquestrar e recortar sua caçada. Ao invés do frenesi e correria, aqui temos o afeto do medo, lento mas sempre ameaçador, até onde o diretor achar suportável.

 

Alguém Me Vigia (1978)

Deslocado em tempos de filmes que de tão explícitos são chamados de “torture porn”, o filme feito para a televisão Alguém me Vigia apresenta  uma hora e meia de tortura psicológica com um trabalho pesado na caracterização da protagonista Leigh Michaels, mulher independente e profissional bem sucedida, que passa a ser vítima de um maníaco “stalker”. Ao contrário do seu filme típico,  Carpenter se utiliza da história character-driven – detalhando a biografia, marcando a personalidade, explorando os pequenos rituais cotidianos, apresentando seu círculo social, seus desejos e anseios para o futuro – para aí entrar a subjetiva da telescópica, o vulto correndo ao fundo, o telefone como principal método de agressão do abusador. O terror Hitchcokiano de observação e obsessão de filmes como Janela Indiscreta (Rear Window, 1954) ganha contornos do seu tempo – um homem que, fora da rotina ordinária, passa o tempo tentando levar suas vítimas à loucura, ápice de uma mentalidade castradora e retrógrada. Para variar, as autoridades não acreditam em sua história, julgando-a delirante. Esse terror de estar sozinho, não contar com ninguém e ser perseguido podendo confiar apenas na própria sorte e ousadia ganharia uma terceira história de Carpenter sobre o assunto, com o seu roteiro Os Olhos de Laura Mars (Eyes of Laura Mars, 1978), dirigido por Irvin Keshner, onde uma fotógrafa tinha visões de assassinatos pelo ponto de vista do criminoso. Três vezes em um mesmo ano, Carpenter usou o ponto de vista cinematográfico para colocar indivíduos na mira de um horror observativo, silencioso e predatório.

 

Elvis (1979)

Contratado pelo canal ABC, Joh Carpenter faz de sua primeira parceria com o ator Kurt Russell um filme basicamente de fantasmas que acompanham uma vida inteira. Elvis Aaron, assombrado pela figura de seu irmão gêmeo Jesse Garon, morto no nascimento, incorpora sua perda de forma a encarnar paradoxos a vida toda, sendo basicamente duas pessoas: o rebelde da festa e o filhinho da mamãe, o roqueiro que causava escândalos e o militar republicano, o homem do campo e a estrela da cidade grande. Ao fim de sua carreira, como é visto no início do filme, a vida que levara perturbava Elvis, que como tantas outras figuras públicas, encontrou dificuldade de conciliar fama, trabalho, vida conjugal e paternidade. A estafa é manifesta nas sombras que projeta na parede, na decadência física, na caricatura que passa a se tornar do seu velho estilo. Carpenter descobriria em Russel seu ator-fetiche, persona funcional para ação física, humor e dramaticidade. Em uma narrativa inteiramente character-driven, Carpenter explora cada um desses lado de Elvis, cativante e detestável ao mesmo tempo, protagonista de uma “novela da vida real” que se tornou marca registrada da indústria com as décadas.

 

A Bruma Assassina (1980)

Diz a chamada, “Reforce as portas. Tranque as janelas. Tem alguma coisa na neblina!”. A Bruma Assassina vira um elemento natural contra seus protagonistas, destrói o modelo de sociedade onde vivem, trazem à tona um passado sombrio e enterrado; é Os Pássaros (The Birds, 1963) de John Carpenter, com a bruma que invade os espaços trazendo espectros de eras antigas junto consigo que vingam-se dos habitantes da próspera Antonio Bay pelos crimes de seus antepassados. Por trás de  toda grande fortuna, há um grande crime – e depois do dia ensolarado, vem a noite com sua neblina azulada e leitosa que uma hora está lá, outra hora foi embora, apenas para reaparecer quando menos se espera. Agora Carpenter tomava uma pequena cidade de assalto, com antagonistas com motivações compreensíveis, dado ao histórico de crimes, discriminação e opressão sofridos. De novo, o terror cadenciado porém irrefreável, o horizonte de expectativas utilizado como pretexto de desconstrução, a perversão com sombras e efeitos visuais do cartão postal. Para os criadores de horror dos anos 70, a estilização era a principal arma de combate contra a propaganda ideológica; a sua forma de provocar e perturbar um sonho de grandeza que deixava tantos para trás. Essa se tornaria uma das tônicas do cinema oitentista de Carpenter, já articulado agente provocador ao criar o seu horror urbano que parecia perguntar: quanto sangue há nas mãos do progresso?

 

Fuga de Nova York (1981)

A nova investida de Carpenter na ficção especulativa, abordando o cenário distópico de Fuga de Nova York, elencando Kurt Russel como o amoral protagonista Snake Plissken, que é chantageado pela polícia a resgatar o presidente dos Estados Unidos da cidade de Nova York agora transformada em um presídio de segurança máxima. Em sua jornada coagida, Snake sempre demonstra uma rebeldia grosseira, cool e valentona  enquanto tenta sobreviver à muito custo às investidas das sombras do império que prende indiscriminadamente, não sente mais necessidade de recuperar e que se autossabota quando seu chefe de Estado cai no meio daqueles que transformou em párias. A civilização cava a sua própria cova em um filme de ação e resgate onde o silêncio predomina grande parte do tempo, os combates são mais longos e mais degradantes para as duas partes do que estamos acostumados e cada tiro é decisivo, ao contrário do que se espera do cinema de ação oitentista; mesmo quando é para demonstrar humor, é ácido, provocativo e niilista. A grande causa do culto por Fuga de Nova York é justamente essa singularidade, onde se nem a ação parece redimir, os pequenos atos simbólicos de Snake fazem questão ao menos de resistir.

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Parte II

Parte III

Comentários (14)

Nilmar Souza | sexta-feira, 24 de Abril de 2015 - 17:00

Coisa fina ... só não vi Elvis, de resto, só pancada. Assalto é o melhor pra mim, dentre esses. Esperando o artigo com Eles Vivem, hahah

Ravel Macedo | sexta-feira, 24 de Abril de 2015 - 18:09

Desses ai Assalto é meu preferido também, puta filmaço. Mas nada supera The Thing!

Pedro Zeffer | quarta-feira, 29 de Abril de 2015 - 17:40

Desses aí impossível escolher um só, mas como disseram, nada supera The Thing!

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