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Cineplayers Entrevista - Tungstênio


A pré-estreia de Tungstênio, novo longa de Heitor Dhalia (O Cheiro do Ralo) ocorreu dia 18 de junho no Estação Net Gávea, no Rio de Janeiro. Entre muitas personalidades de mídia, estiveram presentes o diretor e o elenco principal, composto pelos novatos Wesley Guimarães e Samira Carvalho Bento, em seus primeiros papéis de destaques como Cajú e Keira, além de Fabrício Boliveira (Faroeste Caboclo) e o lendário José Dumont (O Homem Que Virou Suco) como Richa e Seu Ney, respectivamente.

O Cineplayers cobriu a pré-estreia teve a oportunidade de conversar com Wesley, Samira, Fabrício e Dhalia. Confira abaixo!  


Wesley Guimarães 

Cineplayers: Esse é o seu primeiro filme longa-metragem…

Como protagonista, sim. É o primeiro que tem essa grandiosidade, com essa galera super influente no mercado, Zé Dumont, Fabrício, dirigido pelo grande Heitor Dhalia. Mas já tinha feito também outros trabalhos em longas-metragens com personagens um pouco menores. Também já tive essa sensação de pré-estreia, de estar no cinema. Mas agora eu volto como um dos protagonistas e é muito emocionante. 

Como foi a experiência de fazer o filme na sua cidade natal, Salvador?

Filmar em Salvador tornou as coisas mais naturais pra mim. Traz o personagem para o lugar de onde eu sou. Tem um sotaque como o meu, enfim. Mas a história do filme em si que se passa na Salvador mas não mostra a cidade estereotipada, Carnaval, só festa. Mostra uma Salvador muito mais viva, uma Salvador mais verdadeira, com pessoas que são praticamente invisíveis para o resto da sociedade, mostra essas pessoas em um protagonismo, mostra suas histórias, enfim. 

Você trouxe alguma coisa da sua experiência pessoal para viver o seu personagem no filme?

Sim, o Caju como eu disse pra você vive na mesma cidade que eu, e isso traz uma naturalidade maior e melhor para viver o personagem. Além disso o Caju é preto, periférico, criado pela mãe, assim como eu fui criado só pela minha mãe e ele vive da mesma forma que muitas pessoas que eu vejo lá na comunidade que eu moro.  Então pra fazer o Caju eu tive que acessar na minha mente as imagens que já vi, alguns meninos que já estudaram comigo e que hoje vivem da mesma forma que o Caju vive, enfim. Existe muita gente na minha comunidade que dialoga com essa realidade. Então me inspirei neles. É uma forma de representá-los. 

A Ancine recentemente lançou um estudo sobre a participação dos homens negros e das mulheres negras no cinema nacional e os dados revelavam que é um número ainda muito baixo. Gostaria de saber se para você esse é um panorama que vem mudando e se ainda dá para mudar mais?

Claro. Precisa de muito mais. Porque somos um país claro que miscigenado, mas em sua maioria negro. Salvador, Bahia, a maioria é negro. Fruto do trabalho dos negros, fruto dos esforços negros. Então onde estão esses negros, onde que se encontram esses negros, sabe? Que papéis que eles assumem na sociedade e no cinema brasileiro? O Tungstênio vem mesmo para mudar um pouco essa realidade porque o elenco é majoritariamente negro. A equipe também, a maioria são negros e isso me deixa muito feliz, trabalhar pelos meus, porque a gente precisa ser visto, a gente precisa de representatividade. Coisa que ainda é pouco, as mudanças ainda são muito sutis, a gente precisa de muito mais, porque temos muito mais talentos negros. Tem produções que falam que não colocaram um ator negro para interpretar um personagem porque na sua pesquisa de elenco eles não conseguiram encontrar um talento de pele negra. Como assim não? Conheço muita gente boa. Em Salvador, Belo Horizonte, Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro, muitos lugares, muita gente negra muito boa, que precisa ser vista. Então a gente precisa de muito mais, mas eu vejo que o panorama vem melhorando sim. E Tungstênio e um grande exemplo disso. As pessoas podem acompanhar muita gente negra boa, forte e real no cinema. 

Essa é uma história policial de crime. Como que você acha que essa história de gênero permite comentar a sociedade brasileira? Qual é a importância dos temas que o filme aborda?

Eu acho que são temas muito atuais. Desde violência doméstica contra a mulher, o homem que é cafajeste, trai a mulher e depois sai pedindo desculpa, o menino que se acha menos homem porque foi agredido, sabe. É o machismo que impera, o masculino que impera e o Tungstênio aborda esses assuntos de forma muito forte, deixa várias perguntas na cabeça, várias incógnitas, as pessoas vão ficar procurando saber o que significa aquilo, o que significa isso, e muito interessante a forma que a gente trata desses assuntos. Por exemplo, o meu personagem Caju é um menino que devido às circunstâncias da vida virou traficante mas para além de ser traficante ele acha que pode resolver as coisas da forma que acha que deve. Muita gente acha que pode resolver as coisas da forma que quer, pode enfiar o seu nariz onde bem entender, e não é assim que as coisas acontecem. Todos os temas que vocês vão ver agora a gente tá gritando por uma melhoria no nosso país.


Samira Carvalho Bento 

Esse é o seu primeiro grande papel de destaque no cinema. Como foram as filmagens?

Sim, é meu primeiro papel no cinema, e já de cara eu caí num trabalho podendo dar vida a essa personagem Keira, que é uma personagem maravilhosa, muito profunda. O processo foi lindíssimo, foi bastante intenso. O preparador do filme foi Chico Accioly, que é um grande gênio. A preparação da personagem era muito intensa, e ao mesmo tempo eles eram muito acolhedores. Eu me senti em casa apesar da dificuldade de ter que me entregar - eu sou modelo há 14 anos. Modelo é completamente diferente da profissão de atriz. Modelo você tem que ser um "cabide" mesmo, você tem que vender a roupa. Não é sobre suas emoções, os seus sentimentos, a sua entrega como pessoa. Enquanto para Keira, já de cara uma personagem muito profunda, com muitas camadas, eu tive que me desgarrar de todo esse aprendizado de moda para dar vida a ela. E foi a coisa mais linda, uma das experiências mais lindas da minha vida, eu me apaixonei, me encantei pelo cinema e eu quero fazer isso cada vez mais. Eu espero que seja perceptível essa entrega no resultado final.

Quanto de sua experiência pessoal você trouxe da sua vida para viver sua personagem, a Keira?

Trouxe bastante, trouxe muito. Eu acho que eu dei tudo de mim, tudo de todas as experiências que eu já vivi. Obviamente, minha personagem é uma outra pessoa e uma outra história, mas a minha emoção, a minha entrega e as minhas referências de vida eu dispus para o uso da keira. Então eu acho que tem tudo de mim, minha entrega total. apesar de não ser eu mas tem muito de samira de um jeito keira e ela também deixou uma coisa dela em mim e isso é o mais gostoso de perceber o que ficou da keira em samira 

O filme comenta assuntos muito pertinentes: racismo, machismo, crimes ambientais. Para você, qual é a importância desse filme para o cinema brasileiro?

Eu acho que o principal é a possibilidade de abertura de diálogo. Todas essas situações que o filme aponta são infelizmente muito comuns a gente sabe que existe todas essas questões sociais que a gente precisa trabalhar. O filme mostra isso com uma fotografia esplendorosa, mostra isso com muita poesia, muita dor, muito sentimento. Então é um filme que eu acredito que vai possibilitar que a gente abra muitos diálogos de maneiras diversas sobre essas questões que a gente precisa conversar de fato: racismo, machismo, sobre os crimes ambientais, violência policial, violência doméstica, enfim. Muitos outros pontos que estão ali na trama. Eu acho que esse filme nesse momento é muito pertinente. Nesse momento atual da sociedade, eu acho que esse filme cabe muito e que bom que ele pode de fato apontar essas situações de uma maneira tão linda e tão sensível.

A Ancine recentemente lançou um estudo sobre a participação dos homens negros e das mulheres negras no cinema nacional e os dados revelavam que é um número ainda muito baixo. Gostaria de saber se para você esse é um panorama que vem mudando e se ainda dá para mudar mais?

Eu acho que isso pode mudar mais. É importante que se tenha atores e  atrizes negras de frente à câmera, mas eu acho imprescindível que tenham pessoas negras nas equipes, diretores, fotógrafos e fotógrafas, profissionais negros nas profissões de liderança mesmo. Eu acho que a gente só vai evoluir de fato se pessoas negras estiverem nesses cargos de liderança, quando determinar como essa narrativa vai ser contada, como esse sentimento vai ser expressado. Eu acho que é imprescindível a presença de profissionais negros nos cinemas e nas artes de modo geral.


Fabrício Boliveira

Você já fez muitos papéis de destaque na televisão e no cinema brasileiro - Cidade dos Homens, Faroeste Caboclo, Tropa de Elite 2. Como foi atuar em Tungstênio?

Tungstênio foi bacana porque tinha muito tempo que eu não filmava em casa - eu sou de Salvador. E foi ótimo poder entrar nas entranhas do subúrbio de Salvador, discutir sobre expressões, sobre jeitos e poder apresentar Salvador para Samira, para essa galera negra de outros lugares que também foi trabalhar lá. Foi muito lindo fazer essa volta à minha cidade e falar dela.

Para você qual, a importância da abordagem das temáticas do filme?

Tem uma coisa muito interessante nesse filme, que fala de uma confusão mental, fala de um estado de caos. Até o nome do filme, Tungstênio, que é esse elemento que só muda de fase em alta temperatura. Então fala de um estado de confusão mental, de alguma coisa que tá havendo nessa sociedade que faz com com que a gente não consiga agir com tranquilidade, nem respire e fique em conexão sabe para poder agir com clareza. Então o filme fala desse estado de agora, onde tem muitas informações, onde a gente tá bombardeado de possíveis certezas, a gente não tem escuta, a gente não consegue se relacionar com o outro e ouvir a partir do outro, construir uma dramaturgia, sempre conectado com a reprodução que você viu de uma mente comandando. Acho que o filme fala muito disso. 

A Ancine recentemente lançou um estudo sobre a participação dos homens negros e das mulheres negras no cinema nacional e os dados revelavam que é um número ainda muito baixo. Gostaria de saber se para você esse é um panorama que vem mudando e se ainda dá para mudar mais?

É muito triste pensar que uma população que é 50% negra tenha pouca representação no cinema. A gente já tem muita pouca representação em outros cargos, em outras funções é sempre no lugar de trabalho servil. A gente tem que discutir em todas as instâncias, principalmente no cinema, que e esse lugar de diálogo social - onde a gente começa de algum jeito a falar ali para as pessoas de alguma coisa que precisa mudar. Acho que precisa mudar realmente. Que bom que eles divulgaram esses dados para ter um conhecimento mais profundo sobre tudo. Teve uma discussão muito interessante ano passado na discussão do filme Vazante, lá em Brasília (N. do E.: o filme dirigido pela cineasta Daniella Thomas foi criticado por representar os tempos da escravidão negra de maneira “conformista”, do ponto de vista dos brancos), que de algum jeito tem apontado novos lugares para o cinema. Então a gente tem que ficar conectado que tipo de cara a gente quer que nos represente. Que tipo de realidade é essa, que a gente quer comprar o que que dialoga. O que faz sentido hoje para a gente sair e não ficar em casa assistindo tv fechada ou outro tipo de coisa. O que leva a gente para outro lugar. Então acho que essa discussão aí já aponta um novo caminho para o cinema brasileiro

Como você analisa o panorama do cinema e televisão nacional hoje em dia?

Eu tenho me conectado com muita gente interessante. Eu estou frequentando coisas dentro do mercado e outros lugares mais alternativos. Eu gosto de conhecer gente nova. Eu tenho visto coisas muito interessantes: o pessoal de Contagem, trabalhei agora com os Irmãos Carvalho (N. do E.: no curta Eu, minha mãe e Wallace), que são meninos inacreditáveis. Esse trampo agora com Heitor. Fiz o último filme do Eryk Rocha (N. do E.: o longa de ficção Breves Miragens do Sol) que foi um complemento para a minha história, um cara que eu descobri, uma parada assim na vida. Então eu tenho acompanhado uma elevação na discussão sabe, acho que é isso que me interessa mais: o conteúdo, e a partir do conteúdo a renovação da linguagem, acho que a gente ainda precisa apontar mais para isso, como o conteúdo leva pra linguagem, mais do que a linguagem se impõe num formato que já tá meio velho. Acho que quanto mais aprofundar - e é isso que eu tenho visto, aprofundamento nos conteúdos, nas ideias, nesse novo lugar de Brasil - acho que a gente vai entender novas linguagens e ter filmes mais sedutores.


Heitor Dhalia

Esse não é o seu primeiro material adaptado. Como surgiu a vontade de adaptar a obra do Marcelo Quintanilha?

Um produtor me apresentou, e falou: “Ah, Tungstênio”. E na hora me atraiu aquilo, esse nome. Fiquei curioso já no nome. Fui ler a obra do Marcelo e fiquei assim... Com uma estranheza inicialmente, porque era uma história em quadrinhos com uma linguagem super dinâmica, com uma estrutura narrativa super complexa - do recorte temporal dos flashbacks e flashforwards, cada personagem tá num tempo dramático diferente, esses tempos se esbarram… Fiquei impressionado com aquela complexidade narrativa em um universo absolutamente popular. Isso me causou um choque. É uma coisa super sofisticada, mas os personagens e o universo totalmente populares, uma prosódia muito real, uma fala muito incrível. Então eu comecei a me interessar por adaptar. Não sabia exatamente em que lugar esse filme se encaixava, como esse filme seria. Então foi daí que surgiu o interesse, depois eu fui desvendado “porque” fazer esse filme. Na época eu não tinha muita consciência, aí hoje olhando pra trás foi intuição. Mas na verdade o filme é super interessante, como experiência de linguagem narrativa, foca em temas muito relevantes e atuais. Eu nem conseguia ter essa dimensão disso quando estava fazendo. Fui compreendendo à medida que a gente foi avançando no processo. 

Você disse que a linguagem da HQ é muito dinâmica. Como funcionou essa transposição do quadrinho para o filme. Você teve algum medo que algum elemento ficasse em excesso?

Não. Esse quadrinho só tem um jeito de adaptar, na minha opinião. Alguém pode discordar disso, mas acho que o único jeito era ser fiel ao Marcelo, que é muito fechada - a história não caberia digressões ou outras coisas que não estão ali - é muito redonda, e uma estrutura redonda que ou você filmava aquilo ou era melhor não fazer aquilo, na minha opinião. Às vezes você adapta mudando tudo. Nesse caso achei que não. Achei melhor ser fiel e tentar adaptar aquela linguagem da melhor maneira possível no cinema. Aí eu tentei achar essa força narrativa que tava nos quadrinhos acrescentando o elemento de movimento, que é a câmera, as lentes. A linguagem de câmera do filme não é exatamente igual ao dos quadrinhos. Usamos no filme inteiro grandes angulares, o quadrinho não é assim. A gente tentou trazer alguma coisa que tava ali de um jeito muito forte. Para mim funcionou muito como pegada como universo narrativo, estético e temático. É um filme muito pequeno, uma história curta, quase um conto.

Você cria uma linguagem muito arrojada. Muita lente grande angular, muita exploração da profundidade de campo, muitos travellings. Teve alguma obra cinematográfica que inspirou a criação dessa linguagem?

Não, na verdade não. Foi o próprio quadrinho. Aí eu usei o meu conhecimento de cinema para tentar achar melhor tradução disso: as câmeras mais pra cima, em contra-plongée, a gente vai achando isso no set, essa linguagem mais dinâmica da câmera. 

Como se deu a seleção de locações e de atores? Teve alguma escolha óbvia?

O quadrinho foi desenhado de fotos a partir de uma geografia - o Forte Monte Serrat e a praia que está ao lado. Ali que aconteceu o evento real, que é a notícia de jornal. O Marcelo [Quintanilha] fotografou todos aqueles lugares e fez quadrinho em cima de uma geografia real. A gente filmou nesse lugar. Têm outros vários que não estão apontados ou que a gente não tinha exatamente uma coisa equivalente, então a gente criou esse universo. Foi muito legal que a gente construiu uma coisa na Cidade Baixa, situou o filme naquela região de Salvador que é uma região histórica muito pobre. Uma chapa quente alguns lugares que a gente filmou, muito intenso. A gente buscou isso sim. Então a gente tentou encontrar essa geografia do lugar e ao mesmo tempo a geografia humana, que são as pessoas, os atores daquele lugar, aquelas comunidades, grupos de teatro de Salvador. A gente foi achando as pessoas que tinham a ver com aquela dramaturgia. 

Você disse na apresentação que esse é um filme que toca em temas muito pungentes da nossa sociedade. Racismo, relacionamentos abusivos, machismo, crimes ambientais. Qual você acha que é a importância do Tungstênio no panorama do cinema brasileiro? 

Eu acho que a gente está num momento de muitas discussões políticas e sociais e o mundo estão refletindo esse novo espaço que as redes sociais, esse novo espaço público, se ganhou: as discussões de ampla repercussão. Eu acho que em certos tempos críticos o cinema tem a obrigação de dialogar com esses temas, trazer esses temas à baila. A gente tem que discutir, tem que falar sobre ele, tem que ter coragem de falar sobre esses assuntos. Se está falando certo, se está falando errado, se está falando com mais precisão, com menos precisão, de um ponto de vista, de outro ponto de vista... Mas não dá pra esconder esses assuntos, a gente tem que ter coragem de tocar nos temas relevantes, colocar um pulso no que tá acontecendo no país e no mundo. Acho que uma das obrigações do cinema é traduzir esses temas, esses debates, essas questões. E fazer, claro, com histórias, com personagens, sem ser um panfleto, sem querer cair em narrativas fáceis.  E a arte, a gente está falando do campo da arte, do campo da narrativa, da ficção, dos personagens, universos sensíveis. Eu acho que é super importante que o cinema esteja aberto fazendo isso. Acho que tem que fazer mais isso na verdade. 

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